Parecer n° 270/2019

Parecer SCL nº 270/2019
Memorando SGA nº 75/2019
TID nº 18689115
Assunto: Jornal de grande circulação

Senhor Procurador Legislativo Supervisor,

Cuida o expediente de consulta formulada pelo Senhor Secretário Geral Administrativo acerca da definição de jornal de grande circulação. Segundo o memorando, a nobre Vereadora XXXXXXXXXXXXX teria questionado a necessidade da comercialização do jornal em bancas e a exigência de circulação diária, o que afastaria a possibilidade de utilização de jornais de distribuição gratuita, como XXXXXXXXXXXXX e XXXXXXXXXXXXX.

Veio o presente a esta Procuradoria para análise jurídica.

É o relatório. Opino.

As relações entre Administração Pública e administrados são submetidas a um regime próprio, que se convencionou chamar de regime jurídico-administrativo. Explica Celso Antonio Bandeira de Mello que esse sistema se constrói sobre os princípios da supremacia do interesse público e da indisponibilidade do interesse público. Em relação a este último, frisa que “na administração os bens e os interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los nos termos da finalidade a que estão adstritos” (in: Curso de direito administrativo brasileiro. 25ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 69-75).

A indisponibilidade do interesse público permite compreender que as finalidades a que a Administração deve atender estão submetidas a alguns princípios, dentre os quais o da publicidade, que impõe a transparência na atividade administrativa para que os administrados possam conferir se está sendo bem ou mal conduzida, vindo a ser positivado no art. 37, caput, da Constituição Federal. Para o autor, “não pode haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1º, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida” (op. cit., p. 114).

Uma vez que os princípios constituem mandamentos nucleares de um sistema, naturalmente a publicidade constituirá um dos nortes da licitação. Nessa esteira, o art. 3º da Lei Federal 8.666/1993 a enuncia expressamente, sendo de observância obrigatória pela Administração. A publicidade nesse tema “impõe que os atos e termos da licitação – no que se inclui a motivação das decisões – sejam efetivamente expostos ao conhecimento de quaisquer interessados. É um dever de transparência, em prol não apenas dos disputantes, mas de qualquer cidadão” (op. cit., p. 525). É o que se dá, por exemplo, com a vedação ao sigilo nos atos da licitação como regra, a possibilidade de acompanhamento por qualquer cidadão, a publicação de preços registrados e de compras realizadas, a realização de audiência pública em alguns casos etc.

Um dos dispositivos que reflete a incidência do princípio da publicidade se refere à forma de divulgação dos instrumentos convocatório (momento em que se inaugura a fase externa da licitação e se inicia a competição entre interessados), determinando o legislador que se faça por meio de jornal de grande circulação:

“Art. 21. Os avisos contendo os resumos dos editais das concorrências, das tomadas de preços, dos concursos e dos leilões, embora realizados no local da repartição interessada, deverão ser publicados com antecedência, no mínimo, por uma vez:
[…]
III – em jornal diário de grande circulação no Estado e também, se houver, em jornal de circulação no Município ou na região onde será realizada a obra, prestado o serviço, fornecido, alienado ou alugado o bem, podendo ainda a Administração, conforme o vulto da licitação, utilizar-se de outros meios de divulgação para ampliar a área de competição.”

A Lei Federal 10.520/2002, que cuida da modalidade pregão, também contém previsão semelhante:

“Art. 4º. A fase externa do pregão será iniciada com a convocação dos interessados e observará as seguintes regras:
I – a convocação dos interessados será efetuada por meio de publicação de aviso em diário oficial do respectivo ente federado ou, não existindo, em jornal de circulação local, e facultativamente, por meios eletrônicos e conforme o vulto da licitação, em jornal de grande circulação, nos termos do regulamento de que trata o art. 2º;”

O mesmo tratamento foi dado nas licitações para parcerias público-privadas de que trata a Lei Federal 11.079/2004 (art. 15, IV) e para o regime diferenciado de contratações públicas da Lei Federal 12.462/2011 (art. 15, I). Em nível regulamentar, o Decreto Municipal 46.662/2005 reproduz as disposições legais atinentes à matéria (arts. 8º, II, e 10, III).

O legislador, contudo, não definiu “jornal de grande circulação”, trazendo, assim, um elevado grau de subjetivismo, abrindo espaço para discussões. A expressão também é encontradiça em outras searas, distintas de licitação, como na Lei Federal 11.101/2005 – Lei de Falências (arts. 36, 159, § 1º, e 164), na Lei Federal 6.015/1973 – Lei de Registros Públicos (art. 216-A, § 4º), na Lei Federal 10.406/2002 – Código Civil (art. 1.152, § 1º), e na Lei Federal 13.105/2015 – Código de Processo Civil (art. 156, § 2º). Na legislação local, vale citar a Lei Orgânica do Município de São Paulo (art. 117) e o Regimento Interno da Câmara Municipal de São Paulo (art. 86, II).

O debate é aceso. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, já considerou irregular a publicação dos avisos em jornal que não circula todos os dias da semana e que se concentra em cinco municípios do Estado, entre os quais sequer está contemplada a Capital, sede do órgão promotor do certame (Decisão 233/1996, 1ª Câmara, rel. Min. Homero Santos, julgado em 16/10/1996). O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, a seu turno, definiu jornal de grande circulação como aquele de tiragem mínima diária de vinte mil exemplares (TC 6376/016/00, rel. Cons. Fulvio Julião Biazzi, publicado em 04/07/2000). Aludidas decisões são antigas, mas em uma recente, o Superior Tribunal de Justiça assentou:

“13. Ao defender a adequada publicidade dos instrumentos convocatórios, a recorrente limita-se a afirmar que foi realizada a publicação em jornal de grande circulação. O Tribunal estadual, diversamente, consignou que “a conspirar igualmente contra as finalidades da licitação, que busca selecionar a proposta mais vantajosa à Administração e assegurar a mesma oportunidade a todos os interessados, deixou-se de publicar os instrumentos convocatórios em jornal diário de grande circulação no Estado, publicando-os apenas no Jornal Página Zero, com tiragens semanais e circulação regional, em afronta à regra do artigo 21, III, da Lei Federal n° 8.666/93”. Ressalta-se que não contesta o argumento de não foi atendido o requisito trazido no referido art. 21, III, que exige a circulação diária do periódico. Incidência da Súmula 283/STF, por analogia. Além disso, para entender pela suficiente abrangência publicitária da licitação e pela ausência de prejuízo, seria necessária a avaliação do conjunto probatório dos autos, o que é impedido pela Súmula 7/STJ” (2ª Turma, REsp 1.708.269/SP, rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 18/09/2018).

À míngua de definição legal, cabe ao intérprete da lei extrair o seu significado, balizando-se em alguns parâmetros. Em primeiro lugar, a ideia que se subjaz na imposição da publicidade em jornais de grande circulação é dar ampla publicidade as licitações públicas, atraindo maior número possível de interessados e, por conseguinte, permitindo maiores chances da Administração Pública de obter a proposta mais vantajosa. Em segundo, a interpretação não pode subverter a dicção legal, ainda que satisfeita a mesma finalidade, malferindo-se o princípio da legalidade, também norteador da atuação administrativa.

Sobre este último ponto, vale destacar a recente tentativa de alteração legislativa. A Medida Provisória 892/2019 – cuja vigência se encerrou em 03/12/2019 – havia alterado o art. 289 da Lei Federal 6.404/1976 para dispensar a publicação de balanços das sociedades anônimas na imprensa oficial ou em jornal de grande circulação, permitindo-se que se faça nos sítios eletrônicos de entidades administradoras de negociação de valores mobiliários. Na mesma esteira, a Medida Provisória 896/2019 também dispensou a obrigatoriedade de publicação de atos administrativos em jornais de grande circulação, passando a exigir apenas a publicação em diário oficial ou sítio eletrônico oficial do respectivo ente. Os efeitos desta, porém, foram suspensos por decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede cautelar (MC na ADI 6.229/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 18/10/2019).

O Termo de Contrato 47/2015, conforme afirmado pelo Senhor Secretário Geral Administrativo, define jornal de grande circulação como aquela de edições diárias, de segunda a domingo, e circulação mínima de quarenta mil exemplares, distribuídos no Estado de São Paulo, incluindo a Capital e a Região Metropolitana de São Paulo, e com venda regular em bancas de jornal. A meu ver, apenas o último elemento – a comercialização do jornal – é que parece ser estranho aos contornos dados à expressão.

Com efeito. Se o desiderato da Lei de Licitações é conferir ampla publicidade, de forma que os atos da Administração Pública cheguem ao conhecimento de maior número de pessoas possível, são fundamentais a periodicidade (que tem que ser diária, por expressa exigência legal), o número expressivo de exemplares e a distribuição em locais populosos. A circunstância de ser comercializado em bancas de jornal é irrelevante. A um, porque, desde há muito tempo, é bastante comum a opção de usuários pela assinatura, recebendo periódicos em suas casas. E a dois, porque desde o início do século XXI, sobretudo na atual década, cada vez mais pessoas buscam informação em conteúdos disponibilizados gratuitamente em plataformas digitais por meio de dispositivos inteligentes interconectados.

O hábito de leitura de jornais impressos não parece um costume contemporâneo. A era da “Internet das Coisas” provoca uma reflexão sobre a obsolescência de ferramentas muito comuns na década de 90, época da edição da Lei de Licitações, para o acesso ao conhecimento e à informação. Bancas de jornal, lojas e livrarias, onde se adquiriam jornais e revistas até alguns anos atrás, enfrentam crises diante da revolução tecnológica, tendo de se reinventar para não correrem o risco de ter o mesmo destino das locadoras de vídeo. A publicidade em sítios eletrônicos oficiais, nos dias atuais, iria muito mais ao encontro da finalidade pretendida.

Entretanto, a dicção legal não permite ainda a substituição do jornal de grande circulação por um meio eletrônico. Como ressaltado, a eficácia da Medida Provisória 896/2019, que altera o art. 21, III, da Lei Federal 8.666/1993 e o art. 4º, I, da Lei Federal 10.520/2002 para permitir a publicação de atos da Administração exclusivamente em sítios eletrônicos, encontra-se suspensa, ao menos até ulterior decisão de mérito ou sua conversão em lei.

Isto posto, opina-se pela manutenção da definição dada pelo Termo de Contrato 47/2015 à expressão “jornal de grande circulação”, ressalvada a venda regular em bancas de jornal, que pode ser dispensada.

Este é o parecer que submeto ao elevado descortino de V. Sª.

São Paulo, 4 de dezembro de 2019.

Renato Takashi Igarashi
Procurador Legislativo
OAB/SP 222.048