Parecer SCL nº 39/2020
Processo nº 775/2019
TID nº 18588283
Assunto: Pagamento com certidão fiscal vencida
Senhor Procurador Legislativo Supervisor,
Cuidam os autos de pagamento do 4º Termo de Aditamento ao Termo de Contrato XXXXXXXXXXXX, celebrado com a XXXXXXXXXXXX para prestação de serviços técnicos especializados em tecnologia da informação. Segundo consta, a certidão de débitos mobiliários expedida pelo Município de São Paulo está com prazo de validade expirado e a o pagamento pelos serviços prestados está previsto para 26/02/2020.
Vieram os autos a esta Procuradoria para análise.
É o relatório. Opino.
É sabido que o particular que demonstrar interesse na contratação pública, em regra, deve afluir a um certame licitatório, ditado por regras que constam no edital de convocação. A Lei Federal 8.666/1993 estabelece que o licitante não só precisará apresentar a melhor proposta, como também condições de ser contratado pela Administração Pública, que constituem a chamada habilitação e são classificadas em habilitação jurídica, regularidade fiscal e trabalhista, qualificação técnica e qualificação econômico-financeira (art. 28 a 31). Uma vez que é imprescindível a motivação da escolha do fornecedor (art. 26, parágrafo único, II), tais exigências também são formuladas nos casos de contratação direta, embora tenha a Administração Pública maior discricionariedade.
Uma dessas condições consiste na prova de regularidade para com o Fisco Municipal quanto aos tributos relacionados com a prestação licitada, conforme preveem art. 29, III, da Lei Federal 8.666/1993, art. 37, V, do Decreto Municipal 44.279/2003 e art. 1º do Ato da Câmara Municipal de São Paulo 878/2005. Sendo objeto do contrato uma prestação de serviços, o tributo incidente é Imposto sobre Serviços (ISS) e seu recolhimento no Município de São Paulo possibilita a expedição de certidão conjunta de débitos de tributos mobiliários. O ato regulamentar municipal, ademais, exige expressamente a apresentação do aludido documento nas contratações diretas (art. 40, III).
Seria inócuo que as condições habilitatórias pudessem ser satisfeitas apenas no momento da licitação ou contratação. O art. 55, XIII, da Lei Federal 8.666/1993, por essa razão, estipula como cláusula necessária em todos os contratos a que estabeleça “a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. Ao comentar o dispositivo legal, Marçal Justen Filho afirma que “se o particular, no curso da execução do contrato, deixar de preencher as exigências formuladas, o contrato deverá ser rescindido”, mas pondera que a solução não é mecanicista, sendo necessário identificar “uma relação de causalidade entre o problema verificado e a satisfação dos interesses fundamentais que o Estado deve realizar” (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14ª ed., São Paulo: Dialética, 2010, p. 714).
O que é corriqueiro na Administração Pública é a prática de não se realizar pagamento por serviço prestado ao particular que perder as condições de habilitação, como não apresentar certidão negativa de algum débito tributário. Não obstante persistir a dúvida, o Tribunal de Contas da União já tem entendimento consolidado de que, mesmo no inadimplemento das obrigações fiscais da contratada, é “vedada a retenção de pagamento por serviço já executado, ou fornecimento já entregue, sob pena de enriquecimento sem causa da Administração” (Acórdão 2.079/2014, Plenário, rel. Min. Augusto Sherman, julgado em 06.08.2014). A mesma linha já era adotada pelo Superior Tribunal de Justiça há bastante tempo:
“ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRATO. RESCISÃO. IRREGULARIDADE FISCAL. RETENÇÃO DE PAGAMENTO. 1. É necessária a comprovação de regularidade fiscal do licitante como requisito para sua habilitação, conforme preconizam os arts. 27 e 29 da Lei nº 8.666/93, exigência que encontra respaldo no art. 195, § 3º, da CF. 2. A exigência de regularidade fiscal deve permanecer durante toda a execução do contrato, a teor do art. 55, XIII, da Lei nº 8.666/93, que dispõe ser “obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. 3. Desde que haja justa causa e oportunidade de defesa, pode a Administração rescindir contrato firmado, ante o descumprimento de cláusula contratual. 4. Não se verifica nenhuma ilegalidade no ato impugnado, por ser legítima a exigência de que a contratada apresente certidões comprobatórias de regularidade fiscal. 5. Pode a Administração rescindir o contrato em razão de descumprimento de uma de suas cláusulas e ainda imputar penalidade ao contratado descumpridor. Todavia a retenção do pagamento devido, por não constar do rol do art. 87 da Lei nº 8.666/93, ofende o princípio da legalidade, insculpido na Carta Magna. 6. Recurso ordinário em mandado de segurança provido em parte.” (STJ, 2ª Turma, REsp 24.953/CE, rel. Min. Castro Meira, julgado em 04.03.2008) (grifo nosso).
A vedação ao enriquecimento ilícito está insculpida no art. 884 do Código Civil e é um valor caro para o ordenamento jurídico brasileiro. A ausência de registro no CADIN, por exemplo, não é uma condição de habilitação e, ainda assim, não pode constituir fundamento para a Administração deixar de pagar. Nesse sentido o Tribunal de Justiça de São Paulo, há pouco, reafirmou a inconstitucionalidade de lei estadual que vedava o pagamento a prestadora inscrita no referido cadastro e determinou à Administração Pública o cumprimento do seu dever de pagar por serviços que lhe foram prestados (13ª Câmara de Direito Público, Ap. 1016347-39.2017.8.26.0053, rel. Des. Antonio Tadeu Ottoni, julgado em 08.05.2019).
Consta nos autos que a Câmara Municipal de São Paulo não só recebeu as notas fiscais eletrônicas 31218, 31305 e 31210 (fls. 128), como também recebeu o serviço, sem indicar qualquer ressalva, nos termos do art. 73 da Lei Federal 8.666/1993 (fls. 150). Indiscutível, pois, o adimplemento da XXXXXXXXXXXX, restando a esta Edilidade realizar a contrapartida, que é remunerar o serviço prestado. A falta de certidão de tributos mobiliários não é um óbice para tanto.
Há, ainda, mais um argumento.
A XXXXXXXXXXXX é uma sociedade de economia mista integrante da Administração Indireta do Município de São Paulo, cuja criação foi autorizada pela Lei Municipal 7.619/1971, fixando como objetivos a execução de serviços de processamento de dados e tratamento de informações para os órgãos da Administração Direta ou Indireta do Município; na execução, mediante convênio, de serviços de processamento de dados de interesse de qualquer outra entidade ou órgão de Administração Pública; e a assessoria técnica em geral. Trata-se de uma opção do ente público pela descentralização de serviços por meio de criação de entidade.
Segundo Hely Lopes Meirelles, “o objetivo dessa descentralização administrativa é o de utilizar o modelo empresarial privado seja para melhorar atendimento aos usuários do serviço público ou para maior rendimento na exploração da atividade econômica. Além disso, a sociedade de economia mista permite a captação de capitais privados, assim como a colaboração desse setor na direção da empresa.” (Direito municipal brasileiro. 18ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017, p. 414). Não restam dúvidas, dessa forma, que empresas estatais, não obstante integrarem a Administração Pública, são pessoas jurídicas de direito privado e que, conforme art. 173 da Constituição Federal, sujeitam-se a “regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários” (embora o constituinte se refira a estatais exploradoras de atividade econômica, por força do art. 1º da Lei Federal 13.303/2016, a regra também se aplica a estatais prestadoras de serviço público, como a XXXXXXXXXXXX).
A condição de acionista controlador implica não só participação maior na distribuição de dividendos, como também, tendo maior número de ações com direito a voto nas deliberações da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores, o dever de orientar a companhia para a realização de seu objeto social (art. 116, parágrafo único, da Lei Federal 6.404/1976). No caso de empresas estatais, objeto social se relaciona a um interesse público que justificou sua criação, razão pela qual não podem agir com a mesma lógica maximizadora das empresas privadas. Explica Mario Engler Pinto Júnior que, quando a maximização de lucros e os objetivos típicos de política pública forem conflitantes, estes serão prioritários em detrimento daquela, regra que se aplica mesmo a estatais competidoras com empresas privadas, não sendo sua missão pública suplantada pelo objetivo do lucro (Empresa estatal: função econômica e dilemas societários. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 54-55).
A participação do ente público em empresas, como determina o art. 165, § 5º, II, da Constituição Federal, mereceu uma parte destacada do orçamento, a qual consignará “a destinação de recursos para, direta ou indiretamente, cobrir necessidades de pessoas físicas ou déficits de pessoas jurídicas”, aplicando-se também “a toda a administração indireta, inclusive fundações públicas e empresas estatais” (art. 26, caput e § 1º, da Lei Complementar Federal 101/2000). Tais despesas são qualificadas como transferências correntes, da espécie subvenções econômicas, a teor do art. 18 da Lei Federal 4.320/1964. A despesa com a manutenção da XXXXXXXXXXXX em 2020, por exemplo, foi fixada na seção “do orçamento de investimentos das empresas” do orçamento municipal (art. 5º da Lei Municipal 17.253/2019).
Sendo o credor da XXXXXXXXXXXX justamente o seu acionista controlador, a exigência de certidão de tributos mobiliários contida no art. 40, III, do Decreto Municipal 44.279/2003 tem que ser interpretada com temperamentos, mormente cuidando-se de uma contratação direta. Não teria cabimento impor obstáculos por débito fiscal, se o próprio credor – o Município de São Paulo – tem interesse no recebimento de valores devidos pela empresa que dirige. Cuidar-se-ia de afronta ao princípio da razoabilidade, que deve nortear a atuação da Administração paulistana (art. 81 da Lei Orgânica do Município de São Paulo).
Desse modo, é meu entendimento de que a Câmara Municipal de São Paulo não pode se furtar à obrigação de pagar à XXXXXXXXXXXXXXXXX pela prestação realizada de serviços técnicos especializados em tecnologia da informação, nos termos do Termo de Contrato XXXXXXXXXXXX, seja para impedir a ofensa à vedação ao locupletamento ilícito, seja para não incorrer num comportamento irracional de se invocar o direito do credor que é o próprio acionista controlador da contratada.
Frise-se que a presente apreciação é do caso concreto, não podendo ser alargada para casos semelhantes, para os quais exigir-se-ão sempre apreciações casuísticas.
Este é o parecer que submeto ao elevado descortino de V. Sª.
São Paulo, 12 de fevereiro de 2020.
Renato Takashi Igarashi
Procurador Legislativo
OAB/SP 222.048