Parecer n.º 84/2017
TID 16157420
Assunto: Digitalização e disponibilização de acervo da Biblioteca da Câmara Municipal de São Paulo – Direitos autorais.
Sra. Procuradora Legislativa Supervisora:
Trata-se de expediente encaminhado a esta Procuradoria para a elaboração de parecer solicitado pela Supervisora de Biblioteca – SGP. 32, visando esclarecer se a digitalização e disponibilização do acervo integrante da Biblioteca da Câmara Municipal de São Paulo enseja violação aos direitos autorais.
Para tanto, inicialmente esclarece que a Biblioteca da CMSP possui uma seleção de artigos e matérias jornalísticas que tratam da política, história, cotidiano da cidade de São Paulo, da Câmara Municipal e de seus vereadores. Referido acervo contempla três grandes grupos de obras: i) artigos com foco na atuação dos vereadores; ii) artigos acerca da Câmara Municipal e suas legislaturas, matérias sobre política, história e administração pública municipal e iii) pastas de biografias de prefeitos, governadores e demais personalidades relevantes para a história da cidade de São Paulo.
Explica que, com a digitalização do referido acervo, se busca a preservação dos originais da obra, em função dos danos a que se sujeita o suporte físico, bem como beneficiar os usuários da Biblioteca, que teriam acesso a uma interface simples e eficiente para a realização das buscas, assim como poderiam contar com a possibilidade de acesso por mais de um usuário ao mesmo tempo e sem necessidade de deslocamento até a Biblioteca.
Assim, formula o seguinte questionamento: “Uma vez que os artigos e matérias jornalísticas, bem como as fotos que fazem parte dos periódicos e revistas, estão protegidos por direitos autorais, digitaliza-los, agrupá-los em uma base de dados e permitir seu acesso dentro das dependências da CMSP, mesmo que citando a fonte, seria infringir o direito autoral de seu autor ou da entidade responsável por aquela matéria ou artigo?”
É o relatório. Passo a opinar.
A partir da consulta formulada, constata-se a existência de um projeto de digitalização e disponibilização do acervo integrante da Biblioteca da Câmara Municipal de São Paulo.
As obras que integram o acervo da Biblioteca, isto é, os artigos de jornais e de periódicos, as fotos deles integrantes e as biografias, são protegidas pelo direito autoral, mais precisamente pelo regramento inscrito na Constituição Federal (artigo 5º, XXVll), no Código Civil, na Lei Federal nº 9.610/98 e nas demais Convenções e Tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Os direitos autorais, tendo em vista o conjunto de prerrogativas que o compõem, desdobram-se em direitos morais e patrimoniais. Os direitos morais, previstos no art. 24 da Lei Federal nº 9.610/98, em linhas gerais, asseguram ao autor a autoria da criação da obra intelectual. Os direitos patrimoniais, positivados nos arts. 28 e 29 da Lei Federal nº 9.610/98, compreendem, conforme esclarecimentos de Carlos Alberto Bittar, a “faculdade de o autor usar, ou autorizar, a utilização da obra, no todo ou em parte; dispor desse direito a qualquer título; transmitir os direitos a outrem, total ou parcialmente, entre vivos ou por sucessão”[1].
Tendo em vista os termos do expediente encaminhado, verifica-se que a consulta cinge-se à análise da repercussão da digitalização pretendida sobre os direitos autorais patrimoniais dos autores ou das entidades às quais referidos direitos tenham sido cedidos.
A obra jornalística, seguindo princípio geral de obra coletiva, encontra sua diretriz nos arts. 17, §2º e 36, caput, da Lei Federal nº 9.610/98, segundo os quais o direito de utilização econômica de escritos publicados pela imprensa diária ou periódica, com exceção dos assinados ou que apresentem sinal de reserva, pertencem ao editor[2]. Nesse sentido:
Art. 17. É assegurada a proteção às participações individuais em obras coletivas.
- 1º Qualquer dos participantes, no exercício de seus direitos morais, poderá proibir que se indique ou anuncie seu nome na obra coletiva, sem prejuízo do direito de haver a remuneração contratada.
- 2º Cabe ao organizador a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra coletiva.
- 3º O contrato com o organizador especificará a contribuição do participante, o prazo para entrega ou realização, a remuneração e demais condições para sua execução.
Art. 36. O direito de utilização econômica dos escritos publicados pela imprensa, diária ou periódica, com exceção dos assinados ou que apresentem sinal de reserva, pertence ao editor, salvo convenção em contrário.
Parágrafo único. A autorização para utilização econômica de artigos assinados, para publicação em diários e periódicos, não produz efeito além do prazo da periodicidade acrescido de vinte dias, a contar de sua publicação, findo o qual recobra o autor o seu direito.
Nos termos do parágrafo único do art. 36, a cessão de artigos assinados não produz efeitos para além de 20 (vinte) dias da data de sua publicação, salvo disposição contratual contrária convencionando a exploração dos direitos patrimoniais pelo editor (organizador) por prazo superior. Portanto, exceto na hipótese de ressalva contratual, findo o prazo legal indicado, recobra o autor do texto o direito patrimonial de sua obra, o qual é protegido na forma a seguir indicada.
Considerando que a digitalização pretendida constitui uma forma de reprodução do material protegido pelo direito autoral, faz-se necessário o exame da matéria na legislação de regência. Ao analisar a Lei Federal nº 9.610/98, constata-se que esta, ao definir o conceito de reprodução para fins de direito autoral, inclui também o armazenamento das obras em meio eletrônico. Nesse sentido o art. 5º, inciso I, do diploma legal:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:
(…)
VI – reprodução – a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido;
Ainda sobre o tema, importa observar que, nos termos do art. 29, inciso I, da Lei Federal nº 9.610/98, a reprodução total ou parcial de uma obra depende de autorização de seu autor, assim como a inclusão da obra em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero, segundo se extrai do inciso IX do mesmo dispositivo. Nesse sentido:
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:
I – a reprodução parcial ou integral;
(…)
IX – a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero;
E, conforme preceitua o art. 37 da legislação em comento, a mera aquisição do exemplar, do suporte material, não enseja transferência dos direitos patrimoniais do autor:
Art. 37. A aquisição do original de uma obra, ou de exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor, salvo convenção em contrário entre as partes e os casos previstos nesta Lei.
Por outro lado, a reprodução permitida por lei e que não implica violação aos direitos autorais é regulamentada no art. 46 da Lei Federal nº 9.610/98:
Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:
I – a reprodução:
- a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos;
- b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza;
- c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros;
- d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários;
II – a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;
III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra;
IV – o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou;
V – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização;
VI – a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro;
VII – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa;
VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
Pois bem. Analisando as supra indicadas hipóteses de limitações aos direitos autorais, entendo que a digitalização, nos moldes indicados na consulta formulada pela Sra. Supervisora de Biblioteca – SGP. 32, a elas não se ajusta, ensejando, portanto, violação aos direitos autorais patrimoniais.
Analisando precisamente o quanto disposto no art. 46, inciso II, da Lei Federal nº 9.610/98, extrai-se que a reprodução legalmente autorizada é aquela de pequenos trechos, destinada ao uso privado do copista, limitação esta que impediria a possibilidade de disponibilização da reprodução para o público em geral e, consequentemente, para a extração de novas cópias.
E, ainda que a reprodução pretendida não detenha finalidade lucrativa por parte desta Edilidade, entendo que a utilização econômica por parte do autor ou do detentor dos direitos autorais patrimoniais das obras restará prejudicada, tendo em vista que o privará de eventuais retornos pecuniários.
Ressalva-se, contudo, as obras de domínio público e aquelas cuja reprodução seja autorizada pelo detentor dos direitos autorais patrimoniais.
Tratando-se de obra artística, científica ou literária, a proteção dos direitos autorais patrimoniais perdura por setenta anos, contados do primeiro dia do ano seguinte ao da morte do autor (art. 41 da Lei nº 9.610/98[3]), após os quais a obra passa a ser de domínio publico, momento no qual as restrições oriundas dos direitos autorais patrimoniais não mais perduram (art. 45 da Lei nº 9.610/98[4]).
Não se desconhece que o Supremo Tribunal Federal, ao analisar a temática das biografias não autorizadas (ADI n º 4815), tenha decidido que, para a publicação do referido gênero literário, não seria necessária a autorização prévia do indivíduo biografado, das demais pessoas retratadas, nem de seus familiares. Ocorre que, in casu, a análise do tema recai sobre a esfera do biógrafo, o qual tem sua obra protegida pela Lei de Proteção de Direitos Autorais, nos termos já indicados.
Ressalte-se, ainda, que diligenciando a existência de outros modelos a serem utilizados como parâmetro para o processo de digitalização pretendido, não foram localizadas Bibliotecas que utilizem modelo similar. Nesse sentido as informações obtidas mediante conversa telefônica com funcionários da Biblioteca Mário de Andrade e da Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP), acrescido do quanto noticiado nos sites das referidas instituições (doc. 01).
Além disso, diligenciando acerca do acervo, organização e funcionamento das bibliotecas situadas no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, constata-se que apenas aquelas de domínio público ou cujos direitos autorais tenham sido cedidos foram objeto de digitalização e disponibilização ao público (doc. 02). Em igual sentido os acervos da Biblioteca Nacional Digital (integrante da Fundação Biblioteca Nacional), da Biblioteca Digital Unesp e do Arquivo Público do Estado de São Paulo (doc. 03).
Assim, com o objetivo de resguardar esta Edilidade e o Município de São Paulo e, principalmente em razão da intensa controvérsia que envolve a matéria, entendo que apenas as obras que sejam de domínio público ou que contenham autorização dos respectivos autores ou detentores dos direitos autorais patrimoniais sejam digitalizadas e disponibilizadas para acesso aos usuários da Biblioteca da CMSP.
Todavia, tendo em vista a possibilidade de degradação do suporte físico das obras em análise e visando a preservação do direito de propriedade desta Edilidade sobre referidos bens, entendo possível a digitalização do material, por esta Câmara Municipal, única e exclusivamente para evitar sua degradação, ficando a disponibilização dos respectivos arquivos sujeita às limitações acima expostas.
Por fim, ainda que não tenha sido objeto imediato da consulta, merece destaque o fato de que mesmo a reprodução de resumo de notícias (clipping) em órgãos públicos e entidades da Administração Pública não é indene de discussões no meio jurídico, conforme se depreende dos prints processuais, decisões e reportagens anexas (doc. 04), dos quais se extrai a inexistência de um entendimento uniforme.
In casu, a controvérsia reside na necessidade de licença de reprodução, contratada por meio do sistema de agência de notícias, que alguns jornais oferecem para o fim específico de reprodução (doc. 05).
Portanto, neste primeiro momento, também tendo em vista a referida controvérsia e a inexistência de um posicionamento judicial consolidado, entendo que eventual processo de digitalização do acervo da Biblioteca da CMSP deva observar as cautelas acima indicadas. Todavia, não fica impossibilitada a renovação da consulta, em alguns anos, buscando verificar a evolução do tema, notadamente no âmbito do Poder Judiciário.
Este é o Parecer que submeto à criteriosa apreciação de V. Sa.
São Paulo, 20 de julho de 2017.
Ana Paula Sabadin S. T. Medina
Procuradora Legislativa
OAB/SP n.º 309.274
[1] Bittar, Carlos Alberto. Direito de Autor, Rio de Janeiro: Forense, 2015, pag. 71.
[2] Bittar, Carlos Alberto. Direito de Autor, Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 103.
[3] Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.
[4] Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público: I – as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores; II – as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.