Parecer Chefia n° 5/2021 (Encaminha parecer ASS nº 05/2021)
Ref.: Of. Sindilex nº 003/2021 – TID 19169160
Assunto: Parecer jurídico sobre o direito à permanência das Funções Gratificadas após à Emenda Constitucional nº 103 de 2019
À Presidência
Exmo. Sr. Chefe de Gabinete
O Sindicato dos Servidores da Câmara Municipal e do Tribunal de Contas do Município de São Paulo encaminhou à Presidência, por meio do Ofício de referência, Parecer Jurídico da lavra do I. Prof. Dr. Marcio Cammarosano, mediante o qual requer “seja reconhecido e mantido o direito à permanência de funções gratificadas” após a edição da Emenda Constitucional nº 103 de 12 de novembro de 2019. Com efeito, antes da publicação desta Emenda, não há controvérsia quanto ao direito ao deferimento de permanência de gratificações se adimplidas as condições constantes do § 3º do art. 19 da Lei nº 13.637 de 4 de setembro de 2003 (com a redação dada pelo art. 8º da Lei nº 14.381 de 7 de maio de 2007).
Em que pese o meritório parecer, avalizo, em sentido contrário, o culto Parecer ASS nº 5/2021 desta Procuradoria, da lavra do dr. José Luiz Levy, que acompanha o entendimento por mim assentado no Parecer Chefia nº 04/2020 (PA 21/2020), ora contestado.
Trata-se de matéria relevante, com notável impacto orçamentário, financeiro e previdenciário, uma vez que o § 9º do art. 39 da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional nº 103 de 2019 (reforma da Previdência) está assim vazado:
“§ 9º É vedada a incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo”.
A Lei nº 13.637 de 2003, assim dispõe no art.19 (com a redação dada pela Lei nº 14.381 de 2007):
“3º Os valores atribuídos às funções gratificadas tornar-se-ão permanentes aos vencimentos e proventos do servidor, bem assim à pensão por morte, após a percepção por um período mínimo de cinco anos, nas seguintes condições:..”
Em tal cenário normativo, os servidores da Câmara que hajam preenchido as condições para obtenção da permanência da vantagem pelo exercício de função de confiança até o advento da Emenda nº 103 de 2019 fazem jus à mesma; após essa data, parece-me evidente a incidência da vedação constitucional.
São muitas e consistentes as razões que embasam esse entendimento, conforme Parecer Chefia nº 4/2020 (anexo). Aqui limito-me a indicá-las:
1) A norma infraconstitucional contrária à Emenda Constitucional é considerada como revogada ou não recepcionada pelo novo ordenamento jurídico;
2) Nesse sentido, a Procuradoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo fez publicar o Enunciado 124 assim ementado: “CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. INCORPORAÇÃO DE VANTAGENS TRANSITÓRIAS. DESCABIMENTO. O § 9º do art. 39 da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda n. 103/19, revogou todas as normas infraconstitucionais em sentido contrário ao vedar a incorporação de vantagens (a) de caráter temporário ou (b) vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo, descabendo a promoção de ação direta de inconstitucionalidade em face de anterior legislação estadual ou municipal” (Diário Oficial do Estado, Poder Executivo, 4 de abril de 2020, pg. 48).
3) A legislação do município de São Paulo assim distinguia incorporação e permanência:
Nomem iuris | Efeito pecuniário | Efeito previdenciário |
Permanência
(Lei nº 10.442 de 1988, art. 1º, parágrafo único) – revogada pela Lei nº 17.224 de 2019, art. 43, inc.I ) |
A gratificação é tornada permanente, com continuidade nos vencimentos do servidor vedada a incidência cumulativa sobre outras vantagens. | Incide contribuição previdenciária |
Nomem iuris | Efeito pecuniário | Efeito previdenciário |
Incorporação (Lei nº 8.097 de 12 de agosto de 1974; Lei 9.296 de 10 de julho de 1981, art. 33). Etc. | A gratificação incorpora-se aos vencimentos com incidência cumulativa sobre outras vantagens. | Incide contribuição previdenciária |
4) A incorporação aos vencimentos com a incidência cumulativa sobre outras vantagens passou a ser expressamente vedada desde a Emenda Constitucional nº 19 de 1998, que inseriu o inc. XIV no art. 37 da Constituição Federal. Desde então incide a vedação a que os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público sejam acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores, isto é, deixou de haver a possibilidade de “repique” ou “efeito cascata” nas vantagens transitórias incorporadas, o que tornou equivalentes a permanência e a incorporação da legislação local.
5) A equivalência entre os termos permanência e incorporação é patente em julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que julgaram leis incidentes sobre servidores desta Câmara Municipal e do Tribunal de Contas do Município de São Paulo. O § 5º do art. 29 da Lei nº 14.381 de 2007, refere-se à “permanência” de gratificação concedida a servidores deste Legislativo, mas o acórdão a ele referente utiliza o termo “incorporação” (ADIN N°. 9048208-81.2008.8.26.0000, j. 12.09.12; Rel. Cauduro Padin). A Lei nº 14.706 de 2008, aplicável a servidores do Tribunal de Contas do Município, versa sobre a “permanência de função gratificada”, mas o acórdão utiliza o termo “incorporação” (Ap. 0030330-64.2013.8.26.00053, j. 13.03.2017, Des. Silvia Meirelles).
Parece-me útil ressaltar nesse ponto que “para interpretar, temos que decodificar os símbolos no seu uso” (Tércio Sampaio Ferraz Junior, in Introdução ao Estudo do Direito, 10ª ed. rev., atual., São Paulo, Atlas, 2018, pg. 217; o grifo consta no original). E aduz:
O senso comum jurídico tende a aceitar a distinção entre as chamadas definições reais e nominais. (…) Deste sentido da palavra definir faz uso a jurisprudência: “Definir é explicar o significado de um termo, estabelecendo seu valor semântico. É, ainda, colocar em destaque os atributos próprios de um ente, para torna-lo inconfundível com qualquer outro” (STJ, Recurso em Mandado de segurança nº 3889-0-RN, Ministro Humberto de Barros, relator). (op.cit., pg. 242).
Parece-me evidente que a distinção entre “permanência” e “incorporação” constante da legislação local editada antes da Emenda Constitucional nº 19 de 1998 deixou de ter efeito prático após esta Emenda, preservado naturalmente o direito adquirido à incorporação sob a égide da sistemática constitucional anterior. Essa indistinção real é patente não só nos julgados supra transcritos como também na interpretação “conforme à Constituição” dada pelo Supremo Tribunal Federal à incorporação prevista no art. 133 da Constituição do Estado de São Paulo, como tive oportunidade de explanar no Parecer Chefia nº 4/2020.
6) Também se me afigura induvidoso que o “nomem iuris” utilizado na legislação local não é o paradigma para inferir o sentido e o alcance do texto constitucional. É o problema da estrutura do ordenamento como um sistema hierárquico e unitário. Ensina o Professor Tércio Sampaio Ferraz Junior:
“A distinção entre norma-origem e norma-derivada funda-se na subordinação e possibilita a hierarquia. Sua importância é decisiva para resolver problemas resultantes do conflito de normas, ao podermos verificar que estão em posição hierárquica diferente. Assim, as normas constitucionais são normas-origem para as normas legais, pois a constituição subordina hierarquicamente as leis ordinárias: havendo contradição entre elas, prevaleceria aquela sobre estas” (op.cit., pg. 94).
Na verdade, é à luz da jurisprudência sedimentada nos tribunais superiores, notadamente no Supremo Tribunal Federal, bem como da abalizada doutrina, que se deve inferir o sentido e alcance do texto constitucional. Por outro lado, a autonomia do Município para legislar sobre a remuneração seus servidores está delimitada por normas e princípios constitucionais, bem como às normas gerais previdenciárias da União.
7) A novidade da Emenda Constitucional 103/19, no ponto tratado, é que esta vedou a continuidade da majoração na remuneração do servidor obtida por meio de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança uma vez cessada a causa de sua concessão. Isto é o que corresponde à noção de incorporação no sentido em que admitida após a Emenda nº 19 de 1998 pela doutrina e pela jurisprudência, e também à noção de “estabilidade financeira” e de “permanência”, ou “apostilamento”, admitida em legislações locais. E isso, precisamente, é que o passa a estar vedado.
8) Cabe destacar que, no Município de São Paulo, a Lei nº 17.224 de 31 de outubro de 2019, publicada no Diário Oficial da Cidade de 1º de novembro de 2019, doze dias antes da publicação da Emenda Constitucional nº 103 de 2019 extinguiu os regimes de permanência ou incorporação na legislação atinente a servidores da Prefeitura (art.23), tratando-os indistintamente. Mas, de modo tempestivo, assegurou aos servidores que se encontravam no exercício de função de confiança, e que não tivessem alcançado o tempo mínimo necessário à obtenção da respectiva incorporação ou permanência, a permanência em valor proporcional ao tempo já implementado (art. 23, §3º). Indo além, tendo em conta os reflexos previdenciários inerentes à matéria, assegurou aos servidores que não incorporaram ou tornaram permanente a vantagem a opção de incluir ou não tal vantagem da base de cálculo de sua contribuição à previdência (art. 24 § 3º).
9) A Lei nº 17.224 de 2019 não alude ao § 3º do art. 19 da Lei nº 13.637 de 2003, aplicável somente aos servidores da Câmara Municipal de São Paulo, tampouco revogado por lei municipal posterior. Parece-me claro, todavia, que a Emenda Constitucional nº 103 de 12 de novembro de 2019 retirou do ordenamento jurídico seu fundamento de validade, por direta incompatibilidade. Daí a importante e extremamente oportuna previsão da Lei nº 17.224, ao assegurar a permanência em valor proporcional ao tempo já adimplido nas gratificações ali referidas, dias antes da extinção dessa possibilidade por força da reforma constitucional. No Parecer Chefia nº 4/2020 discorri sobre as adequações que me parecem pertinentes nos atos regulamentares vigentes nesta Casa, em especial quanto ao caráter facultativo da contribuição à previdência aos servidores que não tornaram permanente a vantagem associada exercício de função de confiança.
10) O I. Prof. Dr. Marcio Cammarosano, no Parecer jurídico ora apresentado pelo Sindilex, discorre em sentido contrário. Em sua apreciação, nas interpretações comportadas “pela letra do § 9º do artigo 39, há de prevalecer aquela que prestigia princípios constitucionais maiores, quais sejam: princípio da autonomia dos entes federados, da estabilidade financeira, da vedação do retrocesso, bem como do postulado hermenêutico que veda a interpretação de norma restritiva de direitos”.
11) A meritória argumentação do I. Professor não resiste, data venia, à respeitosa, porém contundente, culta e criteriosa análise levada a efeito dr. José Luiz Levy, no parecer ASS nº 5/2021, que ora avalizo, posto que, dentre outras razões:
- a) a inserção do § 9º no art. 39 da Constituição Federal deu-se no bojo da reforma previdenciária, atraindo os princípios dos fins sociais a que ela se dirige e a supremacia do interesse público na interpretação da norma. Todavia, o parecer carece de uma interpretação teleológica; ignora a finalidade e o contexto de sua inserção na Constituição Federal;
- b) O parecer orienta o Administrador a agir a partir da presunção de “legalidade” do 3º do art. 19 da Lei nº 13.637 de 2003 (inserido pela Lei nº 14.381 de 2007) mesmo após a edição da Emenda nº 103 de 2019. Todavia, a legitimidade dessa atuação não parece suficientemente justificada;
- c) Ao apresentar a distinção entre incorporação e permanência o parecer não informa que a distinção foi criada em lei anterior à Emenda Constitucional nº 19 de 1998 e que após essa Emenda acórdão específico relativo à lei que ora se pretende aplicar no âmbito da Câmara (Lei 14.381 de 2007, que alterou a Lei nº 13.637 de 2003) usa os termos permanência e incorporação indistintamente. Também nada diz sobre a extinção de ambas – permanência e incorporação – na Lei municipal nº 17.224 de 2019, editada nos dias anteriores à publicação da Emenda Constitucional nº 103 de 2019.
- d) O parecer do I. Professor afirma – acertadamente – que a Emenda Constitucional nº 19 de 1998 vedou apenas o efeito repique, mas não vedou a estabilidade financeira. Efetivamente, o instituto da incorporação (sem efeito repique) continuou existindo. Porém, o fato de as normas municipais editadas antes da Emenda nº 19 de 1998 permanecerem em vigor em nada altera as ponderações no sentido de identidade de natureza e de efeitos entre incorporação e permanência a partir de então. Na verdade, a interpretação “conforme à Constituição” dada ao art. 133 da Constituição Estadual pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo e pelo Supremo Tribunal Federal é suficiente para demonstrá-lo, como apontado no Parecer Chefia nº 4/2020.
- e) a estabilidade financeira reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na Tese de Repercussão Geral nº 41 em 2009, assegurou ao servidor, como o nome indica, o acréscimo apenas financeiro correspondente à diferença entre os valores recebidos pelo servidor, em decorrência do exercício do cargo em comissão ou função de confiança, e os valores percebidos pelo mesmo servidor, em seu cargo efetivo, atendidas as condições previstas na legislação do ente federado para a sua incorporação, ou seja, mesmo cessado o exercício pelo servidor do cargo ou função de confiança. Porém, a Emenda Constitucional nº 103, de 2019 vedou expressamente a incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança. Tal se compreende no contexto da reforma previdenciária, já que o incremento da remuneração de modo permanente em um número maior de servidores que se rodiziam no exercício dessas funções tem reflexos orçamentários e previdenciários.
- f) O alcance da vedação constitucional não é limitado pela dicção – nomem iuris – constante da legislação local, seja prevendo incorporação ou permanência (termos equivalentes), já que a lei local não poderia, desde a Emenda Constitucional 19 de 1998, permitir incorporação de vantagens ao padrão do servidor que ensejasse o denominado efeito cascata ou repique. De outro lado, a autonomia do município para legislar sobre a remuneração de seus servidores e sobre matéria previdenciária não é absoluta, estando adstrita às normas e princípios constitucionais, conforme arts. 24, inc. XII, 25 “caput”, 29 “caput”, 31, inc. I e II da Constituição Federal.
- g) Mesmo que a aplicação do Direito fosse tão somente um exercício de lógica formal o parecer do I. Professor careceria de fundamentação robusta. De maneira simplista, o silogismo seria assim construído: primeira premissa (incorporação é distinta de permanência); segunda premissa (a Emenda 103 só tratou de incorporação); logo (conclusão) a Emenda não afeta a permanência. Pois bem, o raciocínio parte de dois pressupostos implícitos falaciosos, quais sejam: 1) A Emenda Constitucional nº 19 de 1998 em nada afetou a distinção entre incorporação e permanência, que constava na legislação local anteriormente a ela; e 2) o termo utilizado na legislação local, por força da autonomia do ente federado, seria paradigma para interpretar o alcance do texto constitucional.
- h) Se além da lógica formal, utilizarmos critérios hermenêuticos mais amplos tendo em vista ser o Direito não apenas ciência, mas também experiência, fica ainda mais evidente a fragilidade da argumentação desenvolvida.
12) Em sintonia com o Parecer ASS nº 5/2021, entendo, pois, que o Administrador, após a publicação da Emenda 103/19, assegurados os direitos adquiridos – tal como previsto na própria Emenda mencionada – , não pode autorizar pagamentos aos servidores a título dessa diferença, de modo permanente, pelo exercício do cargo em comissão ou função de confiança, ainda que a legislação do ente federado, não revogada expressamente, aparentemente o ampare. A Administração, ao autorizar pagamento da espécie, estaria agindo em direto confronto ao art. 39, § 9º, da Constituição Federal, incorrendo em severos consectários administrativos e penais, haja vista os prejuízos financeiros e previdenciários implicados na matéria.
E, analisando a consulta do Sindilex ao I. Professor, a resposta do parecerista, bem como as doutas ponderações do dr. José Luiz Levy no Parecer ASS nº 5/2021, entendo o quanto segue.
13) Quanto à primeira pergunta e respectiva resposta: 1. Existem diferenças entre os institutos jurídicos da incorporação e da permanência, tendo em vista a sua aparente semelhança à luz do Princípio Constitucional da Estabilidade Financeira?
A pergunta padece de equívoco ao erigir a estabilidade financeira em “princípio constitucional”. Como tive oportunidade de apontar no Parecer Chefia nº 04/2020, no acórdão que originou a Tese de Repercussão Geral nº 41 do STF, e em julgados posteriores, a estabilidade financeira garante ao servidor efetivo, após certo lapso de tempo de exercício de cargo em comissão ou assemelhado, a continuidade da percepção da diferença entre os vencimentos desse cargo e o de seu cargo efetivo. (STF, 1ª T., Ag.Reg. no RE 687.276/RS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 04/12/2012).
Uma vez pontuado que a estabilidade financeira não é um princípio constitucional, mas uma garantia quanto às diferenças financeiras, assegurada pelo Supremo Tribunal Federal, a questão em comento indaga sobre eventuais diferenças entre os institutos jurídicos da incorporação e permanência.
O ilustre parecerista responde: “1. Os institutos da incorporação e da permanência são igualmente projeções do princípio da estabilidade financeira, mas inconfundíveis. São espécies distintas de um mesmo gênero, submetidas cada qual a regimes jurídicos parcialmente diferenciados”.
A resposta, data venia, carece de fundamento sólido, pois as leis que instituíram no município de São Paulo a incorporação ou permanência são independentes do instituto da estabilidade financeira. Como minuciosamente apontou o dr. José Luiz Levy, as leis, em regra, antes da Emenda nº 19 de 1998, não asseguravam diferença de remuneração, de valores econômicos, mas sim admitiam a incorporação ou permanência da vantagem em si mesma, isto é da própria gratificação ou do próprio adicional. E, após a Emenda nº 19 de 1998, as leis que asseguravam a incorporação ou a permanência em muitos casos foram revogadas, assegurado o direito adquirido decorrente até então.
Já a Lei municipal nº 17.224 de 2019 serviu-se do instituto da estabilidade financeira ao extinguir a incorporação e a permanência nas leis que especificou dias antes da publicação da Emenda Constitucional nº 103 de 2019. Dispôs, assim, que “fica assegurada a percepção de vantagem pessoal nominalmente identificada, de acordo com o tempo de recebimento da gratificação ou adicional e percentuais…” (art. 23, §3º).
Tem-se, pois, que a incorporação e a permanência não são “projeções” da estabilidade financeira; nem esta é um princípio constitucional. A estabilidade financeira é um instituto que assegura ao servidor ser vedado ao ente federado revogar a lei que assegurava a incorporação ou permanência da vantagem (tanto faz se a lei revogada incorporava ou tornava permanente a própria vantagem em si mesma ou os valores econômicos decorrentes da diferença), sem assegurar o direito adquirido à diferença econômica àqueles servidores que faziam jus à mesma até a data da revogação. Se a lei não assegurar isso, o Judiciário a assegurará, aplicando a Tese de Repercussão Geral nº 41 do STF.
- Quanto à segunda pergunta e respectiva resposta: 2. O instituto da incorporação (“in corpore”) tem como uma das características a de fazer uma vantagem servir de base para incidência de outras vantagens. A Emenda Constitucional nº 19/1998 vetaria essa característica típica da incorporação devido à vedação do chamado efeito repique? Em caso positivo, isso tornaria o instituto incorporação equivalente ao da permanência?
O I. Parecerista responde, com propriedade que: A Emenda Constitucional nº 19/1998 vedou apenas o denominado efeito repique ou cascata de incorporações a padrão de vencimento. O efeito cascata, um dos efeitos da incorporação, é que ficou proibido, não a incorporação mesma, da qual aquele era um dos efeitos.
Não há dúvida, com efeito, quanto à continuidade da incorporação – se desprovida de efeito cascata – após a Emenda Constitucional nº 19 de 1998. É paradigmático, quanto ao ponto, a interpretação conforme à Constituição dada ao art. 133 da Constituição do Estado de São Paulo pelo Supremo Tribunal Federal (RE 219.934-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 13.10.2004).
Surpreende, todavia, a inferência do i. Parecerista: Portanto, continuaram a existir, juridicamente os institutos incorporação e permanência, inconfundíveis entre si.
A inferência lógica seria diversa: Portanto, continuou a existir o instituto da incorporação sem efeito cascata. Como este era o ponto que o diferenciava da permanência, após a Emenda Constitucional nº 19 de 1998 os institutos se confundem. Não por acaso, os acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo que analisaram a “permanência” de gratificações nas leis locais promulgadas após a Emenda nº 19 de 1998 incidentes sobre servidores da Câmara Municipal e do Tribunal de Contas do Município a mencionam como “incorporação”.
15) Quanto à terceira pergunta e respectiva resposta 3. A Emenda Constitucional nº 103/2019, que alterou o sistema de previdência social, acresceu o § 9º do artigo 39 da Constituição Federal de 1988, estabelece o fim da incorporação para as “vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão”. Esta vedação constitucional também afetaria o instituto jurídico da permanência, previsto, dentre outros diplomas legais, pelo artigo 19, § 3º da Lei Municipal n. 14.381/2007, para os valores atribuídos às funções gratificadas exercidas pelos servidores da Câmara Municipal de São Paulo? Referida Emenda teria abolido o princípio constitucional da Estabilidade Financeira?
Responde o I. Parecerista: 3. A Emenda Constitucional nº 103/2019, ao acrescentar ao artigo 39 da Constituição o § 9º, veda incorporações ao padrão de vencimento de cargos públicos das vantagens pecuniárias nele referidas. Essa vedação não implica proibição de permanência de acréscimos remuneratórios instituídos por leis e, consequentemente, não afeta, nesse particular, a vigência das mesmas.
O I. Parecerista afirma que o § 9º do art. 39 “veda incorporações ao padrão de vencimento de cargos públicos das vantagens pecuniárias nele referidas”.
Com o máximo respeito, parece-me artificiosa tal afirmação. O § 9º do art. 39 veda a incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo. Parece-me que veda a incorporação de vantagens à remuneração do servidor titular do cargo efetivo, que é o sujeito da remuneração. Em abono a esta leitura, lembre-se a Súmula Vinculante nº 16 do STF, que alude ao significado do termo remuneração no § 3º do mesmo art. 39 da Constituição Federal: “Os artigos 7º, IV, e 39, § 3º (redação da EC 19/98), da Constituição, referem-se ao total da remuneração percebida pelo servidor público.” (Tese definida no RE 582.019 QO-RG, Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 13-11-2008, DJE, 30/02/2009, Tema 142).
Caso pretendesse restringir o significado de remuneração ao “padrão” do cargo, a Emenda Constitucional nº 103 de 2019 deveria fazê-lo de modo expresso, haja vista estar o termo remuneração sedimentado na doutrina e na jurisprudência, inclusive mediante a súmula vinculante citada.
Na sequencia, conclui o parecerista que “essa vedação não implica proibição de permanência de acréscimos remuneratórios instituídos por leis e, consequentemente, não afeta, nesse particular, a vigência das mesmas”.
Nesse ponto, reporto-me aos itens 1 a 9 anteriores, suficientes para apontar as razões pelas quais entendo que o art. 19 § 3º da Lei nº 13.637 de 2003 (com a redação dada pela Lei nº 14.381 de 2007) não prevalece em face do § 9º do art. 39 da Constituição Federal, inserido pela Emenda nº 103 de 2019. Reporto-me ainda ao Parecer Chefia nº 4/2020, no qual exponho as implicações de ordem previdenciária que a matéria encerra, recomendando a adequação dos atos regulamentares vigentes nesta Casa.
Ao que tudo indica, para o I. parecerista sustenta que a inserção do § 9º no art. 39 da Constituição federal por meio da Emenda 103 de 2019, tem modestíssimo alcance, posto que: a) o constituinte empregou erroneamente o termo remuneração (teria querido dizer “padrão do cargo”); b) a vedação ora inserta afetaria tão somente servidores que são remunerados mediante subsídio, já que a incorporação ao padrão, com efeito cascata, já é vedada desde a Emenda 19 de 1998.
Permito-me observar, nesse ponto, que após a Emenda Constitucional 103 de 2019, a Constituição do Estado de São Paulo recebeu a Emenda nº 49, de 6 de março de 2020 que, além de revogar seu art. 133, acrescentou parágrafo único a seu art. 129, assim redigido:
Artigo 129 – Ao servidor público estadual é assegurado o percebimento do adicional por tempo de serviço, concedido no mínimo por quinquênio, e vedada a sua limitação, bem como a sexta-parte dos vencimentos integrais, concedida aos vinte anos de efetivo exercício, que se incorporarão aos vencimentos para todos os efeitos, observado o disposto no artigo 115, XVI, desta Constituição.
Parágrafo único – O disposto no “caput” não se aplica aos servidores remunerados por subsídio, na forma da lei. (NR). Parágrafo único acrescentado pela Emenda Constitucional nº 49, de 06/03/2020.
Assim, os servidores remunerados mediante subsídio, no Estado, não têm direito a quinquênio ou sexta parte. Porém a vedação à incorporação de vantagem decorrente do exercício de cargo ou de função de confiança atinge indistintamente a servidores remunerados ou não mediante subsídio, como se depreende da expressa revogação do art. 133 da Constituição do Estado de São Paulo operada pela Emenda nº 49 de 2020[1].
Logo, também à luz da experiência – como ponderado pelo Dr. José Luiz Levy, no Parecer ASS nº 5/2021 -, revela-se frágil a interpretação pretendida.
Em resumo, segundo o I. parecerista, a inserção do § 9º no art. 39 da Constituição Federal teria tido como objetivo apenas impedir que servidores das entidades federadas que sejam remunerados por subsídios incorporem ao padrão de vencimentos do seu cargo vantagem de natureza temporária percebida em razão do exercício de função de confiança ou de cargo em comissão, mas tal não se aplica se a legislação local utilizar outro termo que não incorporação (e sim outro que atinja os mesmos efeitos, como permanência ou apostilamento). Nessa toada, a inserção em comento é pouco menos que inócua, e a interpretação, data venia, insustentável, uma vez que: 1) Não seria necessária Emenda Constitucional para tanto – bastaria lei da entidade federada; 2) Já existe há anos lei da União e recentemente lei do Município de São Paulo que vedam a incorporação e permanência de vantagem decorrente do exercício de função de confiança ou de cargo em comissão[2]; 3) Alheia-se aos textos legais atuais das esferas federadas, que concretizam tal dispositivo constitucional em seu âmbito, a exemplo do parágrafo único inserto no art. 129 da Constituição do Estado de São Paulo; 4) Afasta-se do postulado da “maior efetividade possível do texto constitucional”.
16) Cabe pontuar, de resto, que os 9 (nove) deferimentos de permanência mencionados pelo Sindicato requerente, no âmbito do Tribunal de Contas do Município, foram objeto de despacho do Subsecretário Geral Administrativo Substituto ou do Subsecretário Geral Administrativo (cópias anexas). Não consta que a matéria haja sido deliberada pelo Presidente ou Plenário do Tribunal, o que há de ser feito, oportunamente, de acordo com o Regimento Interno do TCM.
17) Devo esclarecer, finalmente, que o histórico de Pareceres da Procuradoria, citados pelo Sindicato requerente, que distinguem o instituto da incorporação e permanência tinham em vista casos de servidores que teriam direito adquirido à incorporação antes da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 19 de 1998. Para citar apenas um dos pareceres – mais antigo – mencionado na inicial, transcrevo trecho do Parecer nº 88/ 2001, da lavra do Dr. Antonio Rodrigo de Freitas Jr, então Assessor Chefe, que não diverge do meu entendimento:
Consoante o que já tive ocasião de externar, ao exarar o parecer 11/2001 cujo teor tomo a liberdade de juntar, em cópia, a estes autos, o advento da E.C. nº 19, em 04 de junho de 1998, pôs termo à possibilidade de que “acréscimos percebidos por servidor público (sejam ) computados ou acumulados para fim de concessão de acréscimos ulteriores” (XIV do art.37 da C.R.).
(..)
Anteriormente ao advento da Lei 10.442/88 a única modalidade de indenização ficta reconhecida por lei como veículo para ocasionar a insusceptibilidade de revogação de gratificações discricionárias consistia no instituto da incorporação. Como se sabe, ou se deveria saber, a ocorrência da incorporação fazia incidir a parcela incorporada sobre o padrão do vencimento, de sorte não apenas que a gratificação incorporada tornava-se insusceptível de supressão como, no mesmo ato, que ao repercutir no padrão ensejava majoração do produto final da remuneração.
Foi precisamente colimando oferecer tratamento mais parcimonioso que se deu o advento da Lei 10.442/88. Daí a razão pela qual a proibição da incidência constar de parágrafo (nem preciso reiterar qual a função normativa de um parágrafo), e de parágrafo único do artigo que instituiu justamente a permanência, como instituto inovador no Direito Municipal de São Paulo.
Já o Parecer ADM nº 25 de 2020 (cópia anexa), por mim não avalizado, e o parecer da Assessoria Técnica do E. TCM (cópia anexa), que embasou os despachos de deferimento do Subsecretário Geral Administrativo e do Subsecretário Geral Administrativo Substituto do TCM, vêem-se robustecidos com a linha argumentativa do parecer do I. Professor Márcio Cammarosano. A. E. Mesa, se assim entender pertinente, poderá louvar-se nos mesmos para deferir a permanência dos servidores que hajam implementado as condições previstas no § 3º do art. 19 da Lei nº 13.637 de 2003, com a redação dada pelo art. 8º da Lei nº 14.381 de 2007, mesmo APÓS a Emenda nª 103 de 2019.
Cabe-me reconhecer o esforço do Sindilex com vistas a preservar a expectativa de manutenção da possibilidade de permanência da gratificação de função, que sempre me pareceu salutar, sob muitos ângulos, não só para os servidores como também para a gestão pública. Desde 1998, sucessivas Emendas Constitucionais vêm estreitando as prerrogativas do funcionalismo público, amesquinhando o sistema estatutário, de forma continuada e inquietante.
Todavia, não vislumbrando respaldo jurídico para o pleito, e em face das graves consequências orçamentárias, financeiras e previdenciárias que a matéria encerra, comprometendo o erário, sinto-me constrangida a alertar, por dever de ofício, para as cominações constantes da Lei nº 8.429 de 2 de junho de 1992 (improbidade administrativa). Ressalvo, assim, meu ponto de vista pessoal, ratificando o Parecer Chefia nº 4/2020, por seus próprios e jurídicos fundamentos, e avalizo o Parecer ASS nº 5/2021, da lavra do dr. José Luiz Levy, que reforça o quanto por mim explanado.
Finalmente, entendo que em relação à matéria faz-se aconselhável uma decisão da E. Mesa em caráter normativo, posto haver diversos requerimentos de servidores pleiteando a permanência de gratificação de função tendo adimplido os requisitos para tanto após a Emenda nº 103 de 2019 (PA 21/2020; TID nº 18766463; PA nº 10/2021, TID nº 19128552; PA 14/2021 – TID 19128558; PA 15/2021 – TID 19128560; PA 17/2021 – TID 19128562; PA 62/2021 – TID 19194854).
São as ponderações que respeitosamente elevo à consideração de V.Exa., para submissão à E.Mesa, junto ao Parecer ASS 05/2021, da lavra do dr. José Luiz Levy, que avalizo.
São Paulo, 24 de março de 2021.
Maria Nazaré Lins Barbosa
Procuradora Legislativa Chefe
OAB/SP 106.017
[1] O servidor, com mais de cinco anos de efetivo exercício, que tenha exercido ou venha a exercer, [a qualquer título], cargo ou função que lhe proporcione remuneração superior à do cargo de que seja titular, ou função para a qual foi admitido, incorporará um décimo dessa diferença, por ano, até o limite de dez décimos.
[2] Como bem observado no Parecer ASS nº 5/2021, da lavra do dr. José Luiz Levy: (no âmbito federal, Lei nº 9.527, de 10 de dezembro de 1997, que alterou a redação do art. 62 da Lei nº 8.112 de 11 de dezembro de 1990, posteriormente alterado pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 4.9.2001; no âmbito municipal, Lei nº 17.224 de 2019.