Parecer Chefia n° 11/2021
Ref. TID 19387835
Assunto: Representação acerca de eventual infração ao “decoro parlamentar” protocolada junto à Presidência – Corregedoria – Juízo de admissibilidade – Competência
EMENTA: REPRESENTAÇÃO POR “INFRAÇÃO AO DECORO PARLAMENTAR” À PRESIDÊNCIA DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO COM PEDIDO DE CASSAÇÃO DE MANDATO DE VEREADOR – IMPUTAÇÃO DE CRIMES – JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE – CORREGEDORIA – COMPETÊNCIA.
À Presidência
Exmo. Sr. Chefe de Gabinete
- Exa. requer exame e instrução de resposta, por parte dessa Procuradoria, em face de REPRESENTAÇÃO protocolada na Presidência por XXXXXXXXXX, servidora pública municipal, Ex-vereadora, portadora do título de eleitor nº XXXXXXXXXX, com fundamento no art. 129, inc. I do Regimento Interno da Câmara Municipal de São Paulo , na Resolução nº 07 de 29 de 2003 e no Regulamento Interno da Corregedoria da Câmara Municipal.
I – INTRODUÇÃO
A REPRESENTAÇÃO discorre sobre fato ocorrido na data de 12 de julho de 2021, em sessão extraordinária na qual se discutiam os termos do Projeto de Lei nº 712/2020, que dispõe sobre a Intervenção Urbana Setor Central – PIU-SCE, respectiva regulamentação e revogação da Lei 12.349/1997, e na qual o Nobre Vereador XXXXXXXXXXXXXXX, fazendo uso da palavra, teria exarado discurso que foi objeto de extremo mal-estar e repúdio por boa parte de colegas parlamentares, bem como por diversos setores da sociedade, por enaltecer a superioridade da raça branca, reforçando o impacto de um racismo estrutural, que permeia todos os meandros da sociedade brasileira, e passando para a população a sensação de que as autoridades que conduzem a Administração pública dirigem políticas que preservam a superioridade da população branca, destinatária de privilégios.
A representante XXXXXXXXXXXXXXX transcreveu na representação as palavras ofensivas do Vereador, bem como indicou o endereço eletrônico da sessão disponível em vídeo da Sessão Plenária respectiva disponibilizada pela própria Câmara Municipal de São Paulo em seu canal na plataforma “You tube”.
Sustentou que a conduta do Vereador XXXXXXXXXXXXXXX configurou o crime de racismo, tipificado no artigo 20 da Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que estabelece:
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa”.
Afirmou ainda a representante que tal conduta, além de criminosa, consistiu em abuso das prerrogativas inerentes ao mandato e, portanto, não está amparada pela inviolabilidade do Vereador em suas opiniões e palavras, podendo configurar a quebra do decoro parlamentar, ensejando-se, assim, a abertura de processo de cassação do mandato do Vereador, de acordo com os termos do art. 55, § 1º, da Constituição Federal, art. 18, inciso II, da Lei Orgânica do Município, art. 125, inciso II, do Regimento Interno da Câmara Municipal de São Paulo, e art. 12, incisos I, V, IX e X da Resolução nº 07/2003, cujo teor reproduziu:
Art. 12 – Para fins desta resolução, consideram-se infrações ofensivas ao decoro parlamentar a conduta pessoal do Vereador ofensiva à dignidade do cargo que ocupa, e especialmente:
I – abusar das prerrogativas inerentes ao mandato;
V – praticar, induzir ou incitar, em plenário ou fora dele, a discriminação em razão de gênero, origem, raça, cor, idade, condição econômica, religião e quaisquer outras contra de seus pares ou cidadãos;
IX – desrespeitar a dignidade de todo cidadão e sua manifestação, quando em defesa de seus direitos;
X – praticar irregularidades tipificadas como crimes no desempenho do mandato ou de encargos dele decorrentes;”
Por todo o exposto, a representante requer a V. Exa:
1) determinar o processamento desta Representação perante a Corregedoria da Câmara Municipal, nos termos da Resolução nº 7/2003 e do Regulamento Interno da Corregedoria da Câmara Municipal, para que sejam adotados os procedimentos de praxe, especialmente o previsto nos artigos 22 e 23 da Resolução nº 7/2003;
2) seja determinada a notificação do Vereador representado, XXXXXXXXXXXXXXX, para que apresente sua defesa, e se proceda à Instrução do processo, com intimação da ora representante para os atos decorrentes do processo;
3) ao final, após análise do mérito, seja determinada a cassação do mandato do Vereador ora representado, ante a conduta configuradora de violação do decoro parlamentar e tipificada como crime de racismo na Lei federal nº 7.716/89, bem como, nos termos da legislação vigente pertinente, observando-se os procedimentos regulamentares da Resolução nº 7/2003;
4) Caso não seja decretada a sanção de cassação do mandato, requer-se, alternativamente, a aplicação da penalidade de suspensão do Vereador representado, nos prazos regimentais de 30 a 90 dias;
5) Requer, caso pertinente e oportuno, a manifestação desta representante, bem como a juntada de documentos “a posteriori”, para instrução deste procedimento, bem como sejam franqueadas vistas e copias desta.
Termos pelos quais requer acolhimento, processamento e final procedência da Representação.
Como se sabe, compete à Corregedoria da Câmara Municipal de São Paulo, nos termos do art. 2º da Resolução nº 7, de 29 de maio de 2003, “zelar pela preservação da dignidade do mandato parlamentar e pela observância aos preceitos de ética e decoro parlamentar” e “receber denúncias contra Vereadores por prática de ato atentatório ao decoro e à ética parlamentar”.
Tem sido também acolhido nesta Edilidade entendimento desta Procuradoria, com base nos arts. 51, inciso IV e 52, inciso XIII, da Constituição Federal; arts. 14, III, e 27 da Lei Orgânica, e art. 13, “caput” e inciso I, alíneas “c” e “d”, e inciso II, alínea “a”, bem como em sólida jurisprudência, no sentido de que cabe à E. Mesa efetuar uma prévia análise do preenchimento dos requisitos básicos de admissibilidade de representação protocolada na Presidência contra Vereador, por infração ao decoro parlamentar, detendo a E. Mesa competência para arquivar representação claramente inepta. Poderá a E. Mesa, também, caso entenda oportuno, juntar à representação apta algum documento ou esclarecimento adicional, antes de encaminhá-la à Corregedoria, órgão coletivo a competente para a matéria, nos termos da Resolução nº 7, de 2003.
De acordo com tal entendimento e instada a manifestar-se, passa esta Procuradoria a analisar a presente representação.
A representante, XXXXXXXXXXXXXXX, fez juntar cópia de título de eleitor. Atende, deste modo, os requisitos de legitimidade ativa, previstos no art. 20 da Resolução nº 7 de 29 de maio de 2003.
Passamos, a seguir, por oportuno, a fazer ponderações a respeito: II – DOS FATOS, III DO CRIME DE RACISMO e IV -DO DECORO PARLAMENTAR.
II DOS FATOS
QUANTO AOS FATOS narrados na representação, a representante citou trechos da fala do Vereador XXXXXXXXXXXXXXX registrados na 35ª Sessão Extraordinária de 12 de julho de 2021, além de indicar o link no disponível no Youtube, situando a fala do Nobre Vereador a partir dos 6:40’:10’’.
Indo além, a representante afirma da conduta do parlamentar: “configurou violação do decoro parlamentar”, “exarou discurso em que enalteceu a superioridade da raça branca”, o discurso “configura crime de racismo, nos estritos termos da legislação vigente”. Alude também ao “impacto do racismo estrutural, que inegavelmente permeia todos os meandros da sociedade brasileira”.
Ocorre que a qualificação dos fatos, isto é, o enquadramento normativo dos fatos não compete à representante, mas à Corregedoria, como tivemos oportunidade de externar circunstanciadamente no Parecer Chefia nº 10/2021 (Doc. nº 1,anexo).
Para a qualificação dos fatos, será necessário que a Corregedoria os analise em sua amplitude, tal como efetivamente ocorreram, inclusive para uma análise em seu primeiro juízo preliminar de admissibilidade. Apenas para ilustrar: a íntegra das Notas Taquigráficas da 35ª sessão extraordinária do dia 12 de julho de 2021, que ora se anexa (Doc. nº 2) contempla também falas complementares do Nobre Vereador representado na mesma Sessão, em que ele pede desculpas quanto às suas afirmações anteriores, que, segundo sustenta, tiveram a única de intenção de defender o Prefeito xxxxxxxxxxxx (“Eu quero pedir desculpas humildemente (…)Eu já pedi desculpas. Reitero as minhas desculpas. Estou chateado, estou magoado(…) Mas o Vereador xxxxxxxxx, nosso Presidente, era diretor naquela época. S.Exa. sabe o que fizeram com o xxxxxx. E eu, de todas as maneiras, o defendi”.) não mencionadas na representação, que necessitarão ser sopesadas pela Corregedoria na qualificação dos fatos[1].
III – DO CRIME DE RACISMO – DA INVIOLABILIDADE PARLAMENTAR
QUANTO AO CRIME DE RACISMO, imputado ao Vereador XXXXXXXXXXXXXXX na representação, de modo algum a afirmação constante da representação encontra amparo jurídico, e há de ser afastada de plano, por ser claramente contrária aos termos constitucionais e legais, e, de todo modo, trata-se de matéria alheia ao âmbito de apuração por esta Edilidade, como a seguir se demonstra.
Nossa Constituição Federal traz entre os princípios integrantes do Estado Brasileiro a tutela da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurada entre outros bens fundamentais, a igualdade (art. 5º, caput). Não é por motivo outro que o texto constitucional acolhe de modo expresso a inafiançabilidade e imprescritibilidade do crime de racismo (art. 5º, XLII). Por outro lado, a injúria racial está prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal, que estabelece a pena de reclusão de um a três anos e multa, além da pena correspondente à violência, para aquele que se dirige a pessoa de determinada raça, cor ou etnia, insultando-a com argumentos ou palavras de conteúdo pejorativo.
Injuriar racialmente seria ofender a dignidade ou o decoro, utilizando elementos de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Já o crime de racismo, previsto na Lei n. 7.716/1989, implica conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade. Consiste no preconceito e sua propagação, de forma a discriminar grupos étnicos e pessoas, atribuindo-lhes características inferiores, em função de sua aparência ou origem, promovendo a desigualdade e intolerância.
Com efeito, dispõe o art. 20 da Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, com a redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa”.
O crime de racismo, em seu tipo penal, exige a prática, induzimento ou incitação da discriminação do preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Gabriel Habib, ao diferenciar o delito do artigo 20 da Lei n. 7.716/89 do crime de injúria racial, previsto no artigo 140, §3º do Código Penal, ensina que:
“As condutas incriminadas, embora se pareçam demais, não se confundem, em razão de suas várias distinções. A primeira reside no bem jurídico tutelado, que, enquanto no Código Penal é a honra subjetiva da pessoa, na lei especial é a dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade. A segunda diferença reside no dolo do agente, uma vez que no crime de injúria, o dolo do agente é ofender a pessoa, emitindo conceitos depreciativos, qualidades negativas em direção à pessoa da vítima, ao passo que, no crime previsto na lei ora comentada, o dolo do agente é fazer a distinção da pessoa justamente em razão de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, sem emitir qualquer conceito depreciativo. A terceira diferença reside no sujeito passivo do delito, uma vez que na injúria discriminatória, como o dolo do agente é de ofender a honra de pessoa determinada, ela é o sujeito passivo. No delito ora comentado, considerando que o dolo do agente é a ofensa a toda uma coletividade da mesma raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, não há um sujeito passivo determinado” (HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais. Tomo II. 12º vol. Salvador/BA. Ed. Jus PODIVM, 2010. p. 143).
Portanto, há três diferenças entre os delitos em questão: o bem jurídico tutelado, o dolo do agente e o sujeito passivo. O bem jurídico tutelado no artigo 140, §3º do Código Penal é a honra subjetiva da pessoa. De outro lado, no caso do artigo 20, da Lei n. 7.716/89, o bem jurídico tutelado é o direito à igualdade, o respeito à personalidade e à dignidade da pessoa. Ademais, o dolo do agente, no caso da injúria racial, é ofender a própria pessoa através da utilização de elementos referentes a cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Por outro modo, no caso do crime previsto no artigo 20, da Lei n. 7.716/89, o agente tem a intenção de distinguir, restringir, excluir, segregar alguém em razão de sua cor, etnia, religião ou procedência nacional, sem emitir qualquer conceito que o deprecie individualmente.No que se refere à vítima, não há um sujeito passivo determinado no crime do artigo 20, da Lei nº 7.716/89, atingindo-se uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma etnia, cor, religião ou procedência nacional, enquanto na injúria qualificada há um sujeito passivo determinado, ou seja, a conduta é dirigida a pessoa identificada, ofendendo-lhe a honra.
Ambas as ações são de natureza pública, cuja titularidade compete ao Ministério Público em razão da tutela penal dos bens indisponíveis em questão, no caso o combate à não-discriminação e ao preconceito. Assim, cabe ao Ministério Público a legitimidade ativa para propor a ação penal tanto no caso de injúria racial como no de racismo, sendo a ação de racismo incondicionada e, no entanto, a ação de injúria racial condicionada à representação do ofendido, em face da previsão da Lei Federal nº 12.033, de 29 de setembro de 2009.
Não é atribuição da Câmara Municipal, portanto, qualquer providência em relação a eventual crime de racismo sobre os fatos narrados na representação, já que a titularidade da ação penal a respeito do crime em questão é do Ministério Público.
Porém, de todo modo, há que se ter em conta, por inafastável nos termos da Constituição da República, a inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos nos termos do previsto no artigo 29, inciso VIII, da Constituição Federal, que estabelece:
“Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
……………………………………………………………………………………………………………………….
VIII – inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município;
Aplica-se, aos Vereadores, por simetria, o disposto a inviolabilidade do mandato parlamentar previsto no “caput” do art. 53 da Constituição Federal para Deputados e Senadores:
“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
Assevera José Afonso da Silva que “a inviolabilidade sempre foi a exclusão de crime de opinião por parte de Deputados e Senadores; mas, agora, com a redação da EC-35/2001 ao “caput” do art. 53, se estabelece que eles são invioláveis civil e criminalmente por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Exclui-se assim os congressistas também da responsabilidade civil. A inviolabilidade, que, às vezes, também é chamada de imunidade material, exclui o crime nos casos admitidos; o fato típico deixa de constituir crime, porque a norma constitucional afasta, para a hipótese, a incidência da norma penal” (Curso de Direito constitucional Positivo, 35ª ed., São Paulo: Malheiros, 2011, 535). E Michel Temer, didaticamente, leciona:
“A inviolabilidade diz respeito à emissão de opiniões, palavras e votos. Opiniões e palavras que, ditas por qualquer pessoa, podem caracterizar atitude delituosa, mas que assim não se configuram quando pronunciadas por parlamentar. Sempre, porém, quando tal pronunciamento se der no exercício do mandato. Quer dizer: o parlamentar, diante do Direito, pode agir como cidadão comum ou como titular de mandato. Agindo na primeira qualidade não é coberto pela inviolabilidade. A inviolabilidade está ligada à ideia de exercício de mandato. Opiniões, palavras e votos proferidos sem nenhuma relação com o desempenho do mandato representativo não são alcançados pela inviolabilidade.” (Elementos de Direito Constitucional, 22ª ed., São Paulo: Malheiros. 2007,p. 131).
No mesmo sentido, quanto aos Vereadores, afirma Alexandre de Moraes:
“Dessa forma, são requisitos constitucionais exigíveis para a caracterização da inviolabilidade do vereador: manifestação de vontade, por meio de opiniões, palavras e votos; relação de causalidade entre a manifestação de vontade e o exercício do mandato, entendida globalmente dentro da função legislativa e fiscalizatória do Poder Legislativo e independentemente do local; abrangência na circunscrição do município” (Constituição do Brasil Interpretada, 7ª ed., São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, p. 706).
A garantia constitucional da inviolabilidade parlamentar, em sentido material, representa importante prerrogativa de ordem institucional. É assegurada constitucionalmente ao Vereador, como forma de tutela à própria independência do Parlamentar, que deve exercer seu mandato com autonomia, destemor, liberdade e transparência, a fim de bem proteger o interesse público.
Evidentemente, tal inviolabilidade não é absoluta e ilimitada. Não constitui um manto para proteger comportamentos que abusam das prerrogativas asseguradas aos parlamentares ou desviadas da moralidade e do decoro parlamentar. Por essa razão, nos termos do art. 55, § 1º, da Constituição Federal, eventual abuso dessa garantia da inviolabilidade deve ser apreciado pela própria Casa Legislativa que integra o Vereador, que é o órgão competente para analisar se a conduta questionada foi compatível ou não com o decoro parlamentar.
Com efeito, prevê o art. 55, inciso II, e § 1º da Constituição Federal:
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
……………………………………………………………………………………………………………………….
- 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
Por seu turno, a Lei Orgânica do Município de São Paulo, por outro lado, estabelece em seu art. 18, inciso II e § 1º:
“Art. 18 — Perderá o mandato o Vereador:
I − que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II − cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
- 1.º −É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no Regimento Interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membros da Câmara Municipal ou a percepção de vantagens indevidas”
A matéria é regulada ainda, detidamente, pela Resolução nº 7, de 2003.
−“VEREADOR. INVIOLABILIDADE POR SUAS MANIFESTAÇÕES NO EXERCÍCIO DO MANDATO E NA CIRCUNSCRIÇÃO DO MUNICÍPIO. IMUNIDADE MATERIAL ABSOLUTA. INTERPRETAÇÃO DO INCISO VI DO ARTIGO 29 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
- Parlamentar. Inviolabilidade por suas opiniões, palavras e votos. Imunidade de ordem material. Garantia constitucional que obsta sua submissão a processo penal por atos que se caracterizam como delitos contra a honra, em decorrência de manifestações havidas no exercício das funções inerentes ao mandato e nos limites da circunscrição do Município que representa.
- Excessos cometidos pelo vereador em suas opiniões, palavras e votos, no âmbito do município e no exercício do mandato. Questão a ser submetida à Casa Legislativa, nos termos das disposições regimentais. Recurso extraordinário conhecido e provido” .(RE 140.867/MS, Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 03/06/1996)
−“QUEIXA-CRIME (..) EXTINÇÃO DA “PERSECUTIO CRIMINIS” PELO RECONHECIMENTO, NA ESPÉCIE, DA IMUNIDADE PARLAMENTAR EM SENTIDO MATERIAL – INVIOLABILIDADE COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À RESPONSABILIZAÇÃO PENAL E/OU CIVIL DO CONGRESSISTA – NECESSIDADE, PORÉM, DE QUE OS “DELITOS DE OPINIÃO” TENHAM SIDO COMETIDOS NO EXERCÍCIO DO MANDATO LEGISLATIVO OU EM RAZÃO DELE – SUBSISTÊNCIA DESSE ESPECÍFICO FUNDAMENTO, APTO, POR SI SÓ, PARA TORNAR INVIÁVEL A PERSECUÇÃO PENAL CONTRA MEMBRO DO CONGRESSO NACIONAL – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. – A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, art. 53, “caput”) – que representa um instrumento vital destinado a viabilizar o exercício independente do mandato representativo – somente protege o membro do Congresso Nacional, qualquer que seja o âmbito espacial (“locus”) em que este exerça a liberdade de opinião (ainda que fora do recinto da própria Casa legislativa), nas hipóteses específicas em que as suas manifestações guardem conexão com o desempenho da função legislativa (prática “in officio”) ou tenham sido proferidas em razão dela (prática “propter officium”). Doutrina. Precedentes. – A prerrogativa indisponível da imunidade material – que constitui garantia inerente ao desempenho da função parlamentar (não traduzindo, por isso mesmo, qualquer privilégio de ordem pessoal) – estende-se a palavras e a manifestações do congressista que guardem pertinência com o exercício do mandato legislativo. – A cláusula de inviolabilidade constitucional, que impede a responsabilização penal e/ou civil do membro do Congresso Nacional, por suas palavras, opiniões e votos, também abrange, sob seu manto protetor, (1) as entrevistas jornalísticas, (2) a transmissão, para a imprensa, do conteúdo de pronunciamentos ou de relatórios produzidos nas Casas Legislativas e (3) as declarações feitas aos meios de comunicação social, eis que tais manifestações – desde que vinculadas ao desempenho do mandato – qualificam-se como natural projeção do exercício das atividades parlamentares. Doutrina. Precedentes. – Reconhecimento da incidência, no caso, da garantia de imunidade parlamentar material em favor do congressista acusado de delito contra a honra”.( STF, Pleno, Inq 2874 AgR/DF, Rel. Celso de Mello, j. 01/02/2013, DJe 31/01/2013).
−“CONSTITUCIONAL. VEREADOR: IMUNIDADE MATERIAL: C.F., art. 29, VIII. RESPONSABILIDADE CIVIL.
I-Imunidade material dos vereadores por suas palavras e votos no exercício do mandato, no município e nos limites dos interesses municipais e à pertinência para com o mandato.
II.-Precedentes do S.T.F.: RE 140.867-MS; HC 75.621-PR, Moreira Alves, “DJ” de 27.3.98; RHC 78.026-ES, O. Gallotti, 1ª T., 03.11.98.
III.-A inviolabilidade parlamentar alcança, também, o campo da responsabilidade civil. Precedente do S.T.F.: RE 210.917- RJ, S. Pertence, Plenário, 12.8.98. IV. -R.E. conhecido e provido.(STF, 2ª T, RE 220687/MG, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 13/04/1999, DJ 28-05-1999).
−“EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. VEREADORES.INVIOLABILIDADE (CF, art. 29, VIII).
O texto da atual Constituição, relativamente aos Vereadores, refere à inviolabilidade no exercício do mandato e na circunscrição do Município. Há necessidade, portanto, de se verificar a existência do nexo entre o mandato e as manifestações que ele faça na Câmara Municipal, ou fora dela, observados os limites do Município. No caso, esses requisitos foram atendidos. As manifestações do PACIENTE visavam proteger o mandato parlamentar e a sua própria honra. Utilizou-se, para tanto, de instrumentos condizentes com o tipo de acusação e denunciação que lhe foram feitas pelo Delegado de Polícia. Ficou evidenciado que as referidas acusações e ameaças só ocorreram porque o PACIENTE é Vereador. A nota por ele publicada no jornal, bem como a manifestação através do rádio, estão absolutamente ligadas ao exercício parlamentar. Caracterizado o nexo entre o exercício do mandato e as manifestações do PACIENTE Vereador, prepondera a inviolabilidade. HABEAS deferido”.( STF, 2ª Turma, HC 81730/RS, Rel. Min. Nelson Jobim, j. 18/06/2002, DJ 1/08/2003).
−IMUNIDADE PARLAMENTAR MATERIAL. ENTREVISTA JORNALÍSTICA. NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A MANIFESTAÇÃO E O EXERCÍCIO DO MANDATO. PRÁTICA PROPTER OFFICIUM. INEXISTÊNCIA DE DEVER DE REPARAÇÃO CIVIL. AGRAVO DESPROVIDO.
- A imunidade parlamentar material, que confere inviolabilidade, na esfera civil e penal, a opiniões, palavras e votos manifestados pelo congressista (CF, art. 53, caput), incide de forma absoluta quanto às declarações proferidas no recinto do Parlamento.
- Os atos praticados em local distinto escapam à proteção absoluta da imunidade, que abarca apenas manifestações que guardem pertinência, por um nexo de causalidade, com o desempenho das funções do mandato parlamentar.
- Sob esse enfoque, irretorquível o entendimento esposado no AI 401.600, Relator Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe de 21.02.11: “AGRAVO DE INSTRUMENTO – IMUNIDADE PARLAMENTAR EM SENTIDO MATERIAL (INVIOLABILIDADE) – DECLARAÇÕES DIVULGADAS PELO BOLETIM DIÁRIO DA SESSÃO PLENÁRIA DA CÂMARA LEGISLATIVA E ENTREVISTAS JORNALÍSTICAS PUBLICADAS PELA IMPRENSA LOCAL – IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DE MEMBRO DO PODER LEGISLATIVO DO DISTRITO FEDERAL (CF, ART. 53, ‘caput’, c/c O ART. 32, § 3º) – PRESSUPOSTOS DE INCIDÊNCIA DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA IMUNIDADE PARLAMENTAR – PRÁTICA ‘IN OFFICIO’ E PRÁTICA ‘PROPTER OFFICIUM’ – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. – A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, art. 53, ‘caput’) exclui a possibilidade jurídica de responsabilização civil do membro do Poder Legislativo por danos eventualmente resultantes de suas manifestações, orais ou escritas, desde que motivadas pelo desempenho do mandato (prática ‘in officio’) ou externadas em razão deste (prática ‘propter officium’), qualquer que seja o âmbito espacial (‘locus’) em que se haja exercido a liberdade de opinião, ainda que fora do recinto da própria Casa legislativa, independentemente dos meios de divulgação utilizados, nestes incluídas as entrevistas jornalísticas. Doutrina. Precedentes. – A EC 35/2001, ao dar nova fórmula redacional ao art. 53, ‘caput’, da Constituição da República, explicitou diretriz, que, firmada anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal (RTJ 177/1375-1376, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), já reconhecia, em favor do membro do Poder Legislativo, a exclusão de sua responsabilidade civil, como decorrência da garantia fundada na imunidade parlamentar material, desde que satisfeitos determinados pressupostos legitimadores da incidência dessa excepcional prerrogativa jurídica. – Essa prerrogativa político-jurídica – que protege o parlamentar em tema de responsabilidade civil – supõe, para que possa ser invocada, que exista o necessário nexo de implicação recíproca entre as declarações moralmente ofensivas, de um lado, e a prática inerente ao ofício legislativo, de outro. Doutrina. Precedentes. – Se o membro do Poder Legislativo, não obstante amparado pela imunidade parlamentar material, incidir em abuso dessa prerrogativa constitucional, expor-se-á à jurisdição censória da própria Casa legislativa a que pertence (CF, art. 55, § 1º). Precedentes: Inq 1.958/AC, Rel. p/ o acórdão Min. AYRES BRITTO (RTJ 194/56, Pleno) – RE 140.867/MS, Rel. p/ o acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA (Pleno).”(…) 6. Agravo regimental desprovido.”( STF, 1ª T, RE 606.451 AgR-segundo / Re. Min. Luiz Fux, j. 23/03/2011, DJe 14/04/2011, RTJ 219/632)
E, mais especificamente, quanto ao crime de racismo, o Supremo Tribunal Federal, na apreciação de denúncia formulada pela Procuradoria Geral da República em desfavor de Deputado federal, com a imputação de crime de racismo, tipificado no art. 20, caput, da Lei n° 7.716/1989, proferiu a seguinte decisão:
−“DECLARAÇÕES – CARÁTER DISCRIMINATÓRIO – INEXISTÊNCIA. Declarações desprovidas da finalidade de repressão, dominação, supressão ou eliminação não se investem de caráter discriminatório, sendo insuscetíveis a caracterizarem o crime previsto no artigo 20, cabeça, da Lei nº 7.716/1989. DENÚNCIA – IMUNIDADE PARLAMENTAR – ARTIGO 53 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – INCIDÊNCIA. A imunidade parlamentar pressupõe nexo de causalidade com o exercício do mandato. Declarações proferidas em razão do cargo de Deputado Federal encontram-se cobertas pela imunidade material.(…)
O aludido artigo 20, cabeça, não encerra norma penal em branco – a exigir, para a incidência, complemento normativo –, mas crime cujos elementos típicos relativos à discriminação e ao preconceito constituem estruturas sujeitas à valoração sistemática, decorrente da própria organicidade do Direito.
No mais, observem haver o Pleno, por ocasião do exame do habeas corpus nº 82.424, relator ministro Moreira Alves, redator do acórdão ministro Maurício Corrêa, agasalhado, no tocante à abrangência do conceito de racismo, a necessidade de proceder-se à interpretação teleológica e sistemática da Constituição Federal:
‘8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etmológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias histórias, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma.’
Consoante se depreende do discurso proferido pelo acusado em relação a comunidades quilombolas, as afirmações, embora a consubstanciar entendimento de diferenciação e até de superioridade, mostram-se desprovidas da finalidade de repressão, dominação, supressão ou eliminação, razão pela qual, tendo em vista não se investirem de caráter discriminatório, são insuscetíveis a caracterizarem o crime previsto no artigo 20, cabeça, da Lei nº 7.716/1989.(…)
Ante o quadro, seja pela não configuração do conteúdo discriminatório, seja por estarem as manifestações inseridas na liberdade de expressão prevista no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, seja ante a imunidade parlamentar, deixo de receber a denúncia” (STF, 1ª T. Inq: 4694/DF, Relator: Min. Marco Aurélio. j. 11/09/2018).
Não há, portanto, que se falar em atribuir ao Vereador XXXXXXXXXXXXXXX o crime de racismo, uma vez que, em razão da inviolabilidade material patente no caso, em que, no Plenário da Câmara Municipal, em assunto atinente ao mandato, defendendo o Prefeito Municipal à época, manifestou a sua opinião. Eventualmente, a análise de eventual abuso de suas prerrogativas parlamentares poderão caracterizar infração ao decoro parlamentar, mas jamais crime.
IV – DA INFRAÇÃO AO DECORO PARLAMENTAR
A conduta do Vereador, em tese, pode configurar a quebra do decoro parlamentar e, portanto, caso admitido o processo, ensejará abertura de processo disciplinar contra o Vereador, com a aplicação de penalidades, inclusive a de eventual cassação de mandato, como pleiteia a representante, com fulcro no art. 55, § 1º, da Constituição Federal, art. 18, inciso II, da Lei Orgânica do Município, art. 125, inciso II, do Regimento Interno da Câmara Municipal de São Paulo, e art. 12, incisos I, V, IX e X da Resolução nº 07/2003, cujo teor reproduziu:
Art. 12 – Para fins desta resolução, consideram-se infrações ofensivas ao decoro parlamentar a conduta pessoal do Vereador ofensiva à dignidade do cargo que ocupa, e especialmente:
I – abusar das prerrogativas inerentes ao mandato;
V – praticar, induzir ou incitar, em plenário ou fora dele, a discriminação em razão de gênero, origem, raça, cor, idade, condição econômica, religião e quaisquer outras contra de seus pares ou cidadãos;
IX – desrespeitar a dignidade de todo cidadão e sua manifestação, quando em defesa de seus direitos;
X – praticar irregularidades tipificadas como crimes no desempenho do mandato ou de encargos dele decorrentes;”
Para que se possa qualificar um comportamento como abusivo das prerrogativas parlamentares e ofensivo ao decoro parlamentar em razão de prática de racismo, incidindo nas hipóteses previstas no art. 12, incisos I, V, IX, e X, a conduta há que ser considerada como “irregularidade tipificada como crime no desempenho do mandato”.
Ou seja, embora não seja crime de racismo, a Câmara Municipal, poderá entender que a conduta do Vereador, por tratar-se de ato tipificado como crime na lei penal ( art. 20 da Lei 7.716, de 1989), foi ofensiva ao decoro parlamentar, tal como previsto na Resolução nº 7, de 2003.
Ora, parece a esta Procuradoria que, sendo assim, para que a irregularidade possa ser tipificada como crime, exige-se dolo específico de conduta para que se configure a irregularidade. Assim, não poderá ser aplicada a pena ao Vereador XXXXXXXXXXXXXXX sem que, na apuração da irregularidade tipificada como crime, se constate o dolo específico.
Não basta, evidentemente, para a punição disciplinar do Vereador, o fato de a sua fala na Sessão ter refletido um “racismo estrutural, que inegavelmente permeia toda a sociedade brasileira”, tal como alegado pela I. representante, ex-Vereadora. A punição no caso exige um ato voluntário, intencional, um propósito firme e decidido de “Praticar, induzir ou incitar a discriminação” racial, tal como previsto no tipo penal (art. 20 da Lei 7 artigo 20 da Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989). Silvio Luiz de Almeida discorre sobre racismo estrutural como uma conduta involuntária, nos seguintes termos:
“Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição. Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna[1]se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas”. (in Racismo estrutural, São Paulo : Sueli Carneiro ; Pólen, 2019; 264 p – Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro.
Em nosso entender, se se pretende considerar ofensa ao decoro parlamentar “praticar irregularidades tipificadas como crimes no desempenho do mandato ou de encargos dele decorrentes”, “praticar, induzir ou incitar, em plenário ou fora dele, a discriminação em razão de gênero, origem, raça, cor, idade, condição econômica, religião e quaisquer outras contra de seus pares ou cidadãos” ( art. 12, incisos V e X da Resolução nº 7, de 2003), no caso do crime tipificado como racismo, será necessário verificar quais os elementos subjetivos e objetivos que caracterizam esse crime para que a punição poderá ser aplicada ao Vereador, pois, caso contrário, a Câmara Municipal não estará adstrita ao devido processo legal ao punir disciplinarmente seus parlamentares.
Ora, a punição do crime tipificado como racismo exige o elemento subjetivo dolo, ou seja, que o agente queira o resultado ou assuma o risco de produzi-lo( art. 18, inciso I, do Código Penal). Mais ainda, de acordo com a doutrina e jurisprudência, exige-se para o crime de racismo o dolo específico, ou seja, é imprescindível a demonstração inequívoca da intenção de menosprezar ou discriminar uma raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Sobre o tema, Guilherme de Souza Nucci ensina:
“Elemento subjetivo específico implícito: defendemos, como se dá nos crimes contra a honra, a existência do elemento subjetivo do tipo específico implícito, consistente na vontade de discriminar, segregar, mostrar-se superior a outro ser humano, em todos os delitos previstos nesta Lei. Afasta-se o delito se houver outro ânimo, como, por exemplo, o de brincar (animus jocandi), fazer uma descrição ou uma crítica artística, entre outros fatores. Confira-se: “inegável que o racismo é uma prática torpe e imoral, que merece o repúdio de toda a sociedade, porque afronta os mais elevados valores da dignidade humana. Mas também é inegável que uma condenação, em tal hipótese, não pode permitir qualquer dúvida, subjetivismo ou resultar da imposição cega do chamado ‘politicamente correto’. Se a constituição repudia o crime de racismo, retirando-lhe a prescrição e a fiança, também protege a livre manifestação de pensamento, afastando a censura. […] (Dos crimes de discriminação e preconceito, p. 335).
E a jurisprudência orienta-se de acordo com esse diapasão:
−“ Para configuração do delito previsto no art. 20 da Lei Federal n. 7.716/89 exige-se, além do dolo, o elemento subjetivo específico consistente na vontade de discriminar a vítima.
- As instâncias ordinárias, após minucioso exame do conjunto fático-probatório contido nos autos, concluíram que não restou demonstrado o dolo específico na conduta da agravada. Para desconstituir o aludido entendimento, seria necessário o reexame de provas, incidindo o óbice contido na Súmula n. 7/STJ. 3. Agravo regimental desprovido” (AgRg no REsp 1817240/RS, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 24/09/2019, DJe 27/09/2019).
−“3. Para que o Direito Penal atue eficazmente na coibição às mais diversas formas de discriminação e preconceito, importante que os operadores do Direito não se deixem influenciar apenas pelo discurso politicamente correto que a questão da discriminação racial hoje envolve, tampouco pelo nem sempre legítimo clamor social por igualdade.
- Mostra-se de suma importância que, na busca pela efetividade do direito legalmente protegido, o julgador trate do tema do preconceito racial despido de qualquer pré-concepção ou de estigmas há muito arraigados em nossa sociedade, marcada por sua diversidade étnica e pluralidade social, de forma a não banalizar a violação de fundamento tão caro à humanidade e elencado por nossos constituintes como um dos pilares da República Federativa do Brasil: o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88).
- Para a aplicação justa e equânime do tipo penal previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/89, tem-se como imprescindível a presença do dolo específico na conduta do agente, que consiste na vontade livre e consciente de praticar, induzir ou incitar o preconceito ou discriminação racial.
- O dolo, consistente na intenção de menosprezar ou discriminar a raça indígena como um todo, não se mostra configurado na hipótese, sequer eventualmente, na medida em que o conteúdo das manifestações do recorrente em programa televisivo revelam em verdade simples exteriorização da sua opinião acerca de conflitos que estavam ocorrendo em razão de disputa de terras entre indígenas pertencentes a comunidades específicas e colonos, e não ao povo indígena em sua integralidade, opinião que está amparada pela liberdade de manifestação, assegurada no art. 5º, IV, da Constituição Federal. 7. Ausente o elemento subjetivo do injusto, de ser reconhecida a ofensa ao art. 20, §2º, da Lei do Racismo, e absolvido o acusado, nos termos do art. 386, III, do CPP. 8. Recurso especial conhecido e provido parcialmente para, acolhendo a ofensa ao art. 20, § 2º, da Lei 7.716/89, com fundamento no art. 386, III, do CPP, absolver o recorrente. (STJ, REsp 911.183/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Rel. p/ Acórdão Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 04/12/2008, DJe 08/06/2009).
−“Crime de preconceito- Artigo 20, §2º, da Lei 7716/89- Exigência de dolo específico Absolvição mantida Recurso improvido. (TJSP; 2ª Câmara de Direito Criminal, Apelação Criminal 0008766-96.2017.8.26.0050, Rel. Des.Klaus Marouelli Arroyo; j. 24/08/2020).
−LEI Nº 7.716/89. CRIME RESULTANTE DE PRECONCEITO DE RAÇA E COR. Recurso ministerial voltado à reversão da absolvição. Inviabilidade. Dolo não evidenciado. Improvimento. (TJSP; 7ª Câmara de Direito Criminal, Apelação Criminal 0010290-49.2015.8.26.0196; Rel. Des. Eduardo Abdalla; j.21/03/2018)
−EMENTA: PENAL. ART. 20, §2º, DA LEI 7.716/89. MATERIALIDADE E AUTORIA. COMPROVAÇÃO. DOLO. DÚVIDA. PRINCÍPIO DA DÚVIDA FAVORÁVEL AO RÉU. APLICABILIDADE. 1. O preenchimento do tipo penal previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89, conforme doutrina e assentada jurisprudência, exige a presença do elemento subjetivo (vulgarmente chamado de “dolo específico”) consubstanciado na intenção de promover preconceito ou discriminação contra um grupo de pessoas distinguíveis por um dos critérios listados em seu caput (raça, cor, etnia, religião, procedência nacional). Ausente esse requisito, a conduta é formalmente atípica;
- O Poder Judiciário deve analisar com prudência a nova realidade dos meios de manifestações de opinião, notadamente o espargimento e a intensificação dos debates ensejados pela internet, de modo a evitar um indevido engrandecimento da intervenção do Direito Penal sobre uma ordem de fatos que cada vez mais se repetirão: acaloradas emissões de opiniões, comentários de “mal gosto” e mesmo piadas no bojo de discussões de cunho político, econômico ou social;
- Havendo dúvida sobre o dolo, deve ser contemplado o princípio do in dubio pro reo no caso, reformando-se a sentença condenatória. (TRF4, ACR 5000830-02.2015.4.04.7017, SÉTIMA TURMA, Relatora CLÁUDIA CRISTINA CRISTOFANI, juntado aos autos em 04/08/2020) EMENTA: PENAL. PROCESSO PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. INCITAR A DISCRIMINAÇÃO OU PRECONCEITO DE PROCEDÊNCIA NACIONAL. ART. 20, § 2º, DA LEI 7.716/89. OBJETO DA DIVERGÊNCIA. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO.
- O tipo subjetivo do delito previsto no artigo art. 20, § 2º, da Lei 7.716/89 é o dolo, mais a intenção de praticar discurso discriminatório, o qual se caracteriza mediante afirmações que, além de se basearem em entendimento de diferenciação e de superioridade, visam à dominação, repressão ou eliminação do grupo social tutelado pela norma.
- Ausente comprovação do dolo específico exigido para a configuração da conduta criminosa, impõe-se a solução absolutória.
- Embargos infringentes e de nulidade providos. (TRF4, 4ª Seção, ENUL 5008071-48.2015.4.04.7107, Rel. Des. Luiz Carlos Canalli, j. 21/03/2019)
−“EMENTA: PENAL. CRIMES DE PRECONCEITO. ARTIGO 20, §2º, DA LEI Nº 7.716/89. INCITAÇÃO DE PRECONCEITO CONTRA PESSOAS DE PROCEDÊNCIA NORDESTINA. AUSÊNCIA DE DOLO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ABSOLVIÇÃO MANTIDA.
- O delito de preconceito previsto no artigo 20, §2º, da Lei nº 7.716/89 exige o dolo específico para a sua consumação, não admitindo a forma culposa.
- Hipótese em que, embora reprovável e infeliz a publicação na rede social Facebook, não se constatou na conduta do acusado a real intenção de incitar o preconceito contra a população nordeste.
- Apelação criminal desprovida.” (TRF4, 8ª T. ACR 5010211-55.2015.4.04.7107, Rel. Des. João Pedro Gebran Neto, j.10/12/2016)
Nesse sentido, é preciso que a Câmara Municipal, por meio de sua Corregedoria, ao efetuar o juízo de admissibilidade da representação e eventualmente apurar a conduta do Vereador, tenha em vista não apenas o momento e circunstâncias em que pronunciada, e o denominado racismo estrutural presente na sociedade, no qual emergem expressões como as mencionadas na presente representação, prontamente repudiadas por vários Vereadores presentes na Sessão (todos eles mais jovens) (, e por esse motivo constatada inclusive pelo próprio Vereador representado, razão pela qual motivou de imediato seu pedido de humilde desculpas no curso da própria Sessão, como registraram as notas taquigráficas) mas também a existência de dolo específico para o cometimento do tipo penal exigido para a irregularidade passível de ofensa ao decoro parlamentar.
Isto posto, parece-nos ser o caso de V.Exa enviar a presente representação à Corregedoria, para o exercício do juízo de admissibilidade, posto que:
1) A Corregedoria é a instância colegiada da Câmara Municipal encarregada de zelar pela observância aos preceitos de ética e decoro parlamentar, receber denúncias contra Vereadores por prática de ato atentatório ao decoro e à ética parlamentar e instruir os respectivos processos (arts. 1º e 2º, I da Resolução nº 7 de 2003);
2) O fato de uma representação requerer a cassação de Vereador não implica em que automaticamente o Corregedor deverá remeter a representação ao Plenário, pois os fatos narrados e elementos constantes da representação precisam ser técnica e juridicamente qualificados, COLEGIALMENTE, pela Corregedoria. O rito processual não decorre do requerimento formulado na representação, mas das normas regimentais e legais;
3) Compete à Corregedoria, inicialmente, realizar o juízo de admissibilidade em todos os feitos. No entanto, caso a Corregedoria entenda que o processo deva prosseguir, e os fatos narrados tenham a possibilidade de ensejar a suspensão temporária do mandato, por no mínimo 30 (trinta) até o máximo de 90 (noventa) dias, com a destituição dos cargos parlamentares e administrativos que o Vereador ocupe na Mesa Diretora ou nas Comissões da Câmara, ou a perda do mandato – penalidades cuja aplicação competirá ao Plenário, nos termos do art. 14, II e III e 23 da Resolução nº 07/2003 – será o Plenário a instância competente para realizar um segundo juízo de admissibilidade nos termos do art. 24 da Resolução nº 7 de 2003. Por outro lado, para, e cientificar a representante nos termos da minuta que tomo a iniciativa de anexar ao presente.
De outro lado, para fins resposta à representante, apresentamos a minuta em anexo.
São Paulo, 1º de setembro de 2021.
MARIA NAZARÉ LINS BARBOSA
Procuradora Legislativa Chefe
OAB/SP 106.017
JOSÉ LUIZ LEVY
Procurador Assessor da Chefia − R.F. 11.012
OAB/SP nº 67.816
.
[1] O SR. XXXXXXXXX (PP) – (Pela ordem) – Obrigado pela colaboração e pelo apoio. Realmente eu me equivoquei. Peço desculpas. Eu passei por aquela época em que fui Secretário do Sr. xxxxxxxxxxx, e realmente eu falei, porque eu vi o que ele viveu naquele momento; e foi uma luta muito grande. Desculpem-me. Eu errei. Não quero discutir com ninguém. Eu quero pedir desculpas humildemente. (..) O SR. XXXXXXXX (PP) – (Pela ordem) – Nobre Vereadora xxxxxxxxxxxx, permita-me. Eu já pedi desculpas. Reitero as minhas desculpas. Estou chateado, estou magoado, sem ter bancada. Mas o Vereador xxxxxxxxx, nosso Presidente, era diretor naquela época. S.Exa. sabe o que fizeram com o xxxxx. E eu, de todas as maneiras, o defendi. Não quis nunca, jamais, ter trazido essa ofensa para esse momento. Mas aproveito essa oportunidade para pedir desculpas. E lembrar que eu sempre defendi o xxxxxxxxxx com unhas e dentes, e consegui que terminasse o seu mandato.