Parecer n° 120/2019

Parecer nº 0120/2019
TID nº 18638419

Ref.: Memorando SGA n° 392/2019

Dra. Procuradora Legislativa Supervisora,

Trata-se de memorando encaminhado a esta Procuradoria pela Secretaria de Recursos Humanos SGA. 1, para manifestação sobre a viabilidade de inscrição dos enteados de servidores, na condição de dependentes, para fins de recebimento do benefício de auxílio saúde.
E indaga, em sendo admissível a concessão do auxílio saúde aos enteados de servidores, qual a forma adequada de comprovação de dependência econômica, caso esta seja necessária.
É o breve relato. Passo a opinar.

Iniciaremos o estudo do caso a partir da redação da Lei Municipal n° 16.936/2018, que regulamenta a assistência à saúde, de que trata o inciso II do § 1º do art. 175, da Lei nº 8.989/79. A mencionada lei assim dispõe:

Art. 7º São considerados beneficiários da assistência à saúde a que se refere o art. 6º:
II – dependentes dos beneficiários das alíneas “a”, “b”, “c” e “d” do inciso I, devidamente inscritos pelo titular, atendidos os seguintes critérios:
(…)
b) filhos e menor tutelado ou sob guarda judicial, solteiros, menores de 21 (vinte e um) anos de idade;
c) filhos, tutelados ou sob guarda judicial de qualquer idade, solteiros, quando portadores de necessidades especiais, com rendimentos próprios de até 2 (dois) salários mínimos, ou inválidos, enquanto durar a invalidez;
d) filhos, tutelados ou sob guarda judicial, solteiros com idade entre 21 (vinte e um) e 24 (vinte e quatro) anos de idade, comprovadamente estudantes;

Percebe-se que a lei elenca os filhos, as pessoas tuteladas ou sob guarda judicial, não mencionando expressamente os enteados dos servidores. Diante desta omissão, surge o questionamento se poderiam ser enquadrados como beneficiários também. Para solver a dúvida, devemos recorrer a um exercício de integração de normas jurídicas, a qual se passará a recorrer.
Os enteados, segundo o Direito Civil, não estão enquadrados como parentes por afinidade, e não são parentes na acepção jurídica. Isso porque, como se sabe, o parentesco ou é natural ou é civil, conforme resulte de consanguinidade ou de outra origem (art. 1593, do Código Civil). Ocorre que o parentesco por afinidade, aquele que une o cônjuge ou companheiro aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade, limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro (art. 1595, §1°, do Código Civil). Portanto, não se estende aos filhos do cônjuge ou companheiro.
Contudo, o parentesco não é condição necessária para o enquadramento na condição de beneficiário do auxílio saúde, já que as pessoas tuteladas ou sob guarda judicial não são necessariamente parentes do servidor também.
Para entender melhor a questão, devemos rememorar os conceitos de guarda e de tutela, de modo que se possa estabelecer um paralelo ou um norte.
A guarda é um instituto jurídico que se volta a regularizar uma situação de fato. Exemplo disso se verifica quando a criança ou o adolescente se encontra sob os cuidados de pessoas que não são seus pais, e então, para regularizar a situação, os interessados ajuízam ação destinada à obtenção da guarda judicial, que pode, inclusive, ser prévia à tutela ou à adoção. Observe-se a redação da Lei n° 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
§ 1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.
§ 2º Excepcionalmente, deferir-se-á a guarda, fora dos casos de tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos determinados.
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários.

Já a tutela é um encargo atribuído a uma pessoa capaz para que cuide e pratique os atos da vida civil em favor de pessoa menor, na falta dos pais. O Código Civil elenca as hipóteses:

Art. 1.728. Os filhos menores são postos em tutela:

I – com o falecimento dos pais, ou sendo estes julgados ausentes;

II – em caso de os pais decaírem do poder familiar.

Voltando ao caso objeto de estudo, o enteado, por sua vez, pode estar sob os cuidados de sua madrasta ou padrasto, residindo na mesma casa, inclusive. Contudo, não devemos confundir essa situação com a guarda judicial definida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo dispositivo foi colacionado acima. A guarda judicial se caracteriza por uma regularização da posse de fato de um incapaz.

No entanto, no direito também se emprega o termo guarda para se conceder a gestão do poder familiar a um dos pais, em caso de divórcio. Segundo o Código Civil:
Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:
I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar;
II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.
Assim, consegue-se perceber que o enteado não se enquadra nessa situação descrita pelo Código Civil, que se refere somente aos filhos do casal, biológicos ou adotivos.
Ocorre que na hipótese em que o enteado reside com o servidor, por estar sob a guarda de seu companheiro ou cônjuge, embora não se caracterize a tutela ou mesmo a guarda por parte do servidor, não estando, portanto, enquadrado nas previsões da Lei Municipal n° 16.936/2018, não se pode ignorar a existência de dependência econômica em relação ao servidor, por se encontrar sob o seu cuidado, partilhando de seus bens materiais e vivendo de acordo com o seu estilo de vida.
Até mesmo quando o enteado não reside com o servidor, mas convive de forma frequente, seja por estar sob os seus cuidados em alguns momentos, pelo fato de o seu cônjuge ou companheiro ser detentor da guarda compartilhada, ou seja pela frequência em que o cônjuge exerce o direito de visita, estando o enteado presente em sua vida, pode ficar demonstrada a dependência econômica.
Ademais, o conceito de família passou por transformações, que a ampliaram nas últimas décadas. A filiação não se resume mais aos termos biológicos, e houve um reconhecimento jurídico do afeto, abrindo espaço para o conceito da paternidade socioafetiva, através do qual se entende que o pai é aquele que exerce a função, ainda que não exista vínculo biológico.
Dentro desta mesma lógica, não se admitem mais distinções entre filhos legítimos ou ilegítimos, e entre filhos biológicos ou adotivos. Tal disposição consta no Código Civil, in verbis:

Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

No âmbito previdenciário, dentro do Regime Geral de Previdência Social, os enteados equiparam-se a filhos e são considerados dependentes, atendidos os mesmos requisitos legais. Nesse tocante, observemos a redação da Lei n° 8.213/1991:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave
II – os pais;
III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave.
§ 1º A existência de dependente de qualquer das classes deste artigo exclui do direito às prestações os das classes seguintes.
§ 2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento.

Diante de todas essas mudanças, percebe-se que o benefício do auxílio saúde também sofre influências da nova concepção jurídica das famílias. Não se trata de reconhecer o enteado como filho socioafetivo, mas sim, de admitir que a família, segundo o entendimento mais atual do Direito de Família, não é formada somente por pais e filhos biológicos, e que por isso, deve-se admitir que os laços de afeto também podem gerar consequências jurídicas e dependência financeira.
No caso do questionamento em relação ao enteado de servidor, para fins de recebimento de auxílio saúde, não se exige a comprovação de guarda judicial do enteado, mesmo porque os institutos não se confundem, já que o enteado pode possuir ambos os pais biológicos e ser dependente econômico do servidor da Câmara. Ademais, o menor que se encontre sob guarda judicial já possui seu direito garantido ao benefício do auxílio-saúde, nos termos do art. 7°, da Lei 16.936/18.
Contudo, resta clara a necessidade de comprovação da dependência econômica do enteado, para que seja beneficiário do auxílio saúde.
No tocante à forma de comprovar a dependência econômica, é necessário distinguir as diversas hipóteses concretas:
1. Caso o enteado resida com o servidor, pode-se presumir a existência de dependência econômica, bastando a apresentação de comprovante de residência.
2. Na hipótese em que o enteado não reside com o servidor, mas se encontra sob sua guarda judicial, para fins de futura adoção (no caso de um dos pais ter perdido o poder familiar ou ter falecido) ou tutela, por exemplo, bem como no caso em que o servidor já detenha a tutela do enteado, são hipóteses que já se encontram previstas no art. 7°, inciso II. alíneas b, c ou d, da Lei Municipal n° 16.936/2018, portanto, basta comprovar a existência da guarda ou tutela judicial, pois há presunção legal de dependência econômica nesses casos.
3. Em todos os demais casos, a declaração do Imposto de Renda que comprove que o enteado consta como seu dependente nos parece ser o meio mais seguro.

É a minha manifestação, que submeto à elevada apreciação de V.Sa.

São Paulo, 31 de outubro de 2019.

Cíntia Laís Corrêa Brosso
Procuradora Legislativa
OAB/SP 319.729