Parecer n° 65/2019

Parecer ADM nº 65/2019
Ref.: Processo nº 1.296/2012
TID nº 9965059
Assunto: Inquérito civil nº 697/2012, em trâmite perante a 2ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social do Ministério Público do Estado de São Paulo – apuração de irregularidade na permissão de uso de área municipal em benefício do XXXXXXXXXXXX

Senhora Procuradora Legislativa Supervisora,

Cuida os autos de acompanhamento pela Câmara Municipal de investigação realizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo acerca de possíveis irregularidades na permissão de uso e no comodato de imóvel público ao XXXXXXXXXXXX. Segundo consta, a partir de denúncias, o Parquet instaurou um inquérito civil para sua apuração e, ao seu final, propôs uma ação civil pública em face da entidade privada beneficiada e de XXXXXXXXX, ex-Prefeito do Município de São Paulo, sendo distribuída ao juízo da 15ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo.

Vêm os autos a esta Procuradoria para análise.

É o relatório. Opino.

O pomo da discórdia é o imóvel situado na XXXXXX, XXXXXX, XXXXX, nesta Capital. Noticiou-se ao Ministério Público que, pelo Decreto Municipal 534.128, de 09/05/2012, o então Prefeito do Município de São Paulo, XXXXXXXXXXXX, teria permitido o uso do bem ao XXXXXXXXXXXX sem indicação de interesse público, rendendo ensejo à instauração de um inquérito civil. É a dicção do ato expedido pelo Executivo:

Art. 1º. Fica autorizada a outorga de permissão de uso ao XXXXXXXXXXXX de São Paulo, a título precário e oneroso, de área municipal, com edificações, situada na confluência da XXXXXX com a XXXXX, Distrito de XXXXX, para a continuidade de suas atividades socioesportivas.
Art. 2º. A área de que trata o artigo 1º deste decreto está configurada na planta XXXXX do arquivo do Departamento de Gestão do Patrimônio Imobiliário, juntada à fl. 526 do processo administrativo nº XXXXXX, delimitada pelo perímetro XXXXX, de formato irregular, com XXXXXm² (XXXXXXXX), e será descrita quando da formalização do respectivo Termo de Permissão de Uso pelo referido Departamento.
Parágrafo único. As edificações mencionadas no artigo 1º deste decreto são aquelas constantes da Informação nº 072/DGPI.4/2011, juntada às fls. 467/475 do processo administrativo nº 2010-0.173.264-9.
Art. 3º. Do Termo de Permissão de Uso, além das cláusulas usuais, deverá constar que o permissionário fica obrigado a:
I – não utilizar a área para finalidade diversa da prevista no artigo 1º deste decreto, bem como não cedê-la, no todo ou em parte, a terceiros;
II – não permitir que terceiros se apossem do imóvel, bem como dar conhecimento imediato à Prefeitura de qualquer turbação de posse que se verifique;
III – restituir o imóvel inteiramente livre e desocupado, independentemente de qualquer notificação, tão logo solicitado pela permitente, sem direito de retenção ou indenização, a qualquer título, inclusive por eventuais benfeitorias, ainda que necessárias, as quais passarão a integrar o patrimônio municipal;
IV – cumprir as contrapartidas sociais estabelecidas pelas Secretarias Municipais de Esportes, Lazer e Recreação, de Educação e de Assistência e Desenvolvimento Social, bem como pela Subprefeitura de Vila Mariana;
V – cumprir as obrigações e encargos já assumidos.
Art. 4º. A Prefeitura terá o direito de, a qualquer tempo, fiscalizar o cumprimento das obrigações estabelecidas neste decreto e no respectivo Termo de Permissão de Uso.
Art. 5º. A Prefeitura não será responsável, inclusive perante terceiros, por quaisquer prejuízos decorrentes de obras, serviços e trabalhos a cargo do permissionário.
Art. 6º. Serão aplicadas:
I – multa de XX% (XXX por cento) sobre o valor que seria devido a título de retribuição mensal, caso a contrapartida fosse pecuniária, se o permissionário infringir o disposto nos incisos I e II do artigo 3º deste decreto;
II – multa de XX% (XXX por cento) sobre o valor que seria devido a título de retribuição mensal, caso a contrapartida fosse pecuniária, se o permissionário infringir qualquer uma das demais obrigações dispostas no artigo 3º deste decreto ou no respectivo Termo de Permissão de Uso.
§ 1º. Por ocasião da aplicação de qualquer das multas previstas no caput deste artigo, devidas por cada infração constatada, ainda que cumulativamente, será fixado, a critério da permitente, prazo para a correção da irregularidade, de acordo com a natureza e a complexidade das providências que deverão ser adotadas pelo permissionário.
§ 2º. A não correção da irregularidade no prazo fixado acarretará a revogação da permissão de uso outorgada, sem prejuízo da adoção das medidas judiciais, quando cabíveis.
§ 3º. Fica expressamente ressalvado o direito de a permitente exigir indenização suplementar, nos termos do disposto no parágrafo único do artigo 416 do Código Civil.
Art. 7º. Independentemente das disposições previstas neste decreto, poderá a permitente, a qualquer tempo, revogar a permissão de uso mediante simples notificação administrativa.
Art. 8º. Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação.

No curso do procedimento investigatório, foram ouvidas as seguintes pessoas:
a) Prefeitura do Município de São Paulo: o Executivo, por meio da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação, afirmou que o interesse público estaria presente, na medida em que o XXXXXXXXXXXX seria um clube aberto para a população civil, sendo permitido a qualquer cidadão solicitar sua inclusão como sócio e possuindo em seus quadros esportistas oriundos de camadas mais pobres da sociedade que encontram na prática esportiva um instrumento de ascensão social. A retomada do imóvel, por outro lado, diminuiria o atendimento, uma vez que a entidade contribuiria com eficiência para o desenvolvimento das políticas públicas de esporte e lazer da cidade.
b) XXXXXXXXXXXX: o clube sustentou que desenvolveria diversas atividades em prol da população carente, que recebe alimentação, orientação médica, condução e bolsas de estudo, bem como faria doações de equipamentos desportivos e alimentos a entidades carentes e cederia mensalmente suas dependências para reuniões, eventos esportivos e festas requisitadas pelo Poder Público, clubes de terceira idade, congressos de professores etc. A associação também justificou que possuía concessão administrativa de uso por 25 anos desde 1986 e que, em razão da demora da renovação, expedira-se o decreto questionado.
c) Câmara Municipal de São Paulo: o Legislativo informou ao Parquet que não haveria qualquer procedimento fiscalizatório sobre a permissão de uso da referida área e destacou que haveria um projeto de lei, o PL 219/2012, sobre a concessão de novo prazo, cuja tramitação, porém, se achava suspensa por força de decisão do juízo da 7ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo nos autos n. XXXXXX. Ademais, o art. 114, § 4º, da Lei Orgânica do Município, na visão desta Casa, não exigiria autorização legislativa para o fim pretendido.
d) Tribunal de Contas do Município de São Paulo: o órgão fiscalizador comunicou a existência de procedimento de apuração em curso.

Antes da conclusão do inquérito civil, adveio a Lei Municipal 17.090/2019, resultado da conversão do PL 107/2018 e cujo texto é o seguinte:

Art. 1º Fica o Executivo autorizado a prorrogar, nos mesmos termos e desde que cumpridas as condições avençadas, o prazo previsto pela Lei nº 9.083, de 7 de junho de 1980, que autorizou o uso de área municipal, classificada como AC-1 pela Lei nº 16.402, de 22 de março de 2016, ao Ipê Clube, por vinte anos, prorrogável por mais vinte.
Parágrafo único. Nos mesmos termos do “caput” deste artigo e, também pelo mesmo prazo, fica o Executivo autorizado a manter a cessão da área de que trata o Decreto nº 11.225, de 13 de agosto de 1974.
Art. 2º Fica autorizada a outorga ao XXXXXXXXXXXX de São Paulo, a título oneroso, na modalidade comodato, de área municipal, com edificações, situada na confluência da XXXX com a XXXX, Distrito de XXX, para a continuidade de suas atividades socioesportivas, por vinte anos, prorrogável por mais vinte, revogado o Decreto nº 53.128, de 9 de maio de 2012.
Art. 3º A área de que trata o art. 2º está configurada na planta DGPI-00.126_00 do arquivo do Departamento de Gestão do Patrimônio Imobiliário, delimitada pelo perímetro XXXXX, de formato irregular, com XXXX m² (XXXXXX), e será descrita quando da formalização do respectivo Termo de Permissão de Uso pela Administração Pública Municipal.
Art. 4º As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Art. 5º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Cabe observar que a manifestação desta Casa Legislativa se deu em 2012, bem antes da apresentação do referido PL 107/2018, cuja justificativa consistia em “assegurar a clubes que estão em dia com as contrapartidas assumidas com o Poder Executivo” e que, ademais, “prestam relevantes serviços à sociedade nas suas áreas de atuação e as áreas onde estão instaladas e contribuem para a qualidade ambiental do entorno”.

Para o Ministério Público, todavia, houve contratação ilícita. Na peça exordial dos autos da ação civil pública, narra o autor que, em 13/06/2012, formalizara-se termo de permissão de uso a título precário e oneroso, pelo qual a permissionária comprometia-se a utilizar a área para finalidades socioesportivas mediante contrapartidas que beneficiariam somente associados e alguns poucos atletas. O clube estaria instalado desde 1957 por comodato, com sucessivas prorrogações, e, em seguida, por concessão administrativa pelo prazo de 25 anos, por meio da Lei Municipal 10.070/1986. Além do Decreto Municipal 53.128/2012, a Lei Municipal 17.090/2019 teria autorizado o Executivo a outorgar comodato do bem por 20 anos, prorrogáveis por mais 20. Em que pese a realização de benfeitorias ao longo de mais de 60 anos, a contratação autorizada pelo então Prefeito seria lesiva ao patrimônio público.

De acordo com o Parquet, a licitação seria obrigatória para alienação ou permissão de uso de imóvel ou outra oneração, a teor do art. 17, I da Lei Federal 8.666/1993 e do art. 114 da Lei Orgânica do Município. A hipótese excepcional de dispensa só teria lugar se houvesse interesse público e social devidamente justificado, o que não ocorrera nos fatos apurados, posto que se trata de clube composto por pequeno número de associados privados e de poucos atletas e estudantes da rede municipal de ensino, configurando priorização indevida de equipamento público para poucos privilegiados e, por conseguinte, desvio de finalidade.

Apurou-se que, apesar de não possuir finalidade lucrativa, o XXXXXXXXXXXX exigiria para aquisição de título associativo o pagamento de R$ XXXX, além da mensalidade de R$ XXXX. Dessa forma, os 350 a 400 atletas defensores do clube em modalidades desportivas não seriam associados e, por isso, têm frequência restrita ao espaço. Apesar do atendimento a projetos sociais, o interesse maciço seria essencialmente privado, restando evidente a falta de interesse social relevante numa cidade carente de praças, áreas de lazer, esporte, cultura e outros locais de convivência para a população em geral.

Nem o art. 114, § 4º, da Lei Orgânica do Município, tampouco a Lei Municipal 17.090/2019 e o Decreto Municipal 53.128/2012 poderiam constituir fundamento legal para a permissão de uso de bem público ao XXXXXXXXXXXX. Argumentou o Ministério Público que não haveria ato discricionário puro e descontrolado, pois todo ato administrativo tem certo grau de vinculação, devendo a escolha do administrador público se orientar por princípios constitucionais. O caso em questão, pois, feriria, além da legalidade e da obrigatoriedade da licitação, os princípios da moralidade, impessoalidade, eficiência e igualdade.

Pelos fatos apurados, promoveu o Ministério Público a ação civil pública em face da Prefeitura do Município de São Paulo, XXXXXXXXXXXX e XXXXXXXXXXXX de que trata o presente expediente, com o fim de ver declarada a nulidade do Decreto 53.128/2012, do termo de permissão de uso a título precário e oneroso, e da Lei 17.090/2019 e do eventual termo de comodato. Também objetiva o autor a condenação do ex-Prefeito e da entidade privada ao pagamento de indenização por dano material ao Município em valor mensal, com base no valor do imóvel, de locação e de IPTU desde a última ocupação irregular em maio de 2012 até a efetiva desocupação, a ser arbitrado pelo juízo, sem prejuízo de indenização por danos morais coletivos.

A ação foi registrada sob n. XXXXX e distribuída ao juízo da 15ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo. Ao receber a inicial, o magistrado apenas indeferiu o pedido de liminar, determinando a citação das pessoas indicadas no polo passivo da demanda.

É o parecer que submeto ao elevado descortino de Vossa Senhoria.

São Paulo, 26 de junho de 2019.

Renato Takashi Igarashi
Procurador Legislativo
OAB/SP 222.048