Parecer n° 38/2019

TID n. 18322127
Ref. Memorando SGA n. 28/2019
Assunto: Possibilidade jurídica de instalação de um “Espaço Ecumênico” nas dependências do Palácio Anchieta

Parecer ADM n. 38/2019

Sra. Dra. Procuradora Legislativa Supervisora,
Trata-se de memorando enviado pela Secretaria Geral Administrativa da Casa, a pedido da Presidência, solicitando apreciação jurídica acerca da possibilidade de instalação de um “Espaço Ecumênico” nas dependências do Palácio Anchieta e, em caso de avaliação positiva, de elaboração de texto normativo para tal finalidade.
Para efeito de elucidação, acostou-se ao expediente documentos referentes à existência de espaço similar em funcionamento na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e na Assembleia Legislativa de São Paulo.
É o relato do necessário. Passa-se a opinar.
A palavra “ecumênico” provem do vocábulo grego oikoumenikós (“mundo habitado”), que deriva de oíkos, significando “casa”, “lugar onde se vive”.
Vincula-se seu uso ao sentido de universalidade nos mais variados âmbitos: geográfico, cultural, político, de gênero, racial e religioso.
Do ponto de vista religioso, o termo “ecumênico” vem emprestar o sentido de congregação de pessoas de diferentes religiões .
Sendo assim, em última análise, a pretensão cuja análise se submete a presente manifestação, diz respeito a instalação de um espaço, nas dependências da sede desta Edilidade, destinado a orações, reflexões e outros atos religiosos ou de crença.
A única questão jurídica que se impõe, in casu, é analisar se a laicidade do Estado impede que o espaço em questão seja instalado nas dependências do próprio municipal. Vejamos.
Segundo o artigo 19 da Constituição Federal, o Brasil é um Estado laico:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Por outro lado, a Carta Magna também estabelece como garantia constitucional inviolável a “liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” .
Antes disso, a liberdade religiosa já se encontrava contemplada na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948: “Artigo XVIII. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular” .
Em 1992 o Brasil ratificou dois tratados internacionais que preveem a liberdade religiosa.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto n. 592, de 06 de julho de 1992, estabelece em seu artigo 18:
1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.
2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas à limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.
4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais – de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificado pelo Brasil por meio do Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992, prevê no seu artigo 12 norma de idêntico teor.
Assim, é importante esclarecer em que termos se dá a laicidade do Estado brasileiro, em coexistência com a garantia da liberdade religiosa, a fim de que se analise adequadamente a questão posta.
Segundo José Afonso da Silva , a laicidade no Brasil significa o tratamento isonômico a todos os cidadãos, independentemente do credo que professem ou da ausência de uma crença religiosa.
Daniela Jorge Milani conclui que a expressão “Estado Laico” “se relaciona com a neutralidade em relação às religiões, o que significa não privilegiar ou desprestigiar cidadãos em virtude de seu credo ou não crença”.
A autora esclarece, ainda, que o Brasil não admite o laicismo – que pretende a exclusão completa da religião e seus sinais do âmbito público –, e sim a salutar separação entre Estado e Igreja, bem como a neutralidade em relação a todas as religiões, garantindo o pluralismo, citando SARLET et al :
Importa destacar que o laicismo e toda e qualquer postura oficial (estatal) hostil em relação à religião revelam-se incompatíveis tanto com o pluralismo afirmado no Preâmbulo da Constituição Federal, quanto com uma noção inclusive de dignidade da pessoa humana e liberdade de consciência e de manifestação do pensamento, de modo que a necessária neutralidade se assegura por outros meios, tal e como bem o demonstra o disposto no art. 19, I.
O E. Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de delinear o sentido da laicidade do Estado brasileiro em algumas oportunidades. Mais recentemente, em 27/09/2017, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.439/DF, acerca do Acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé, prevendo ensino religioso confessional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, a E. Corte assim se posicionou:
ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS. CONTEÚDO CONFESSIONAL E MATRÍCULA FACULTATIVA. RESPEITO AO BINÔMIO LAICIDADE DO ESTADO/LIBERDADE RELIGIOSA. IGUALDADE DE ACESSO E TRATAMENTO A TODAS AS CONFISSÕES RELIGIOSAS. CONFORMIDADE COM ART. 210, §1°, DO TEXTO CONSTITUCIONAL. CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 33, CAPUT E §§ 1º E 2º, DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL E DO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL PROMULGADO PELO DECRETO 7.107/2010. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE.
1. A relação entre o Estado e as religiões, histórica, jurídica e culturalmente, é um dos mais importantes temas estruturais do Estado. A interpretação da Carta Magna brasileira, que, mantendo a nossa tradição republicana de ampla liberdade religiosa, consagrou a inviolabilidade de crença e cultos religiosos, deve ser realizada em sua dupla acepção: (a) proteger o indivíduo e as diversas confissões religiosas de quaisquer intervenções ou mandamentos estatais; (b) assegurar a laicidade do Estado, prevendo total liberdade de atuação estatal em relação aos dogmas e princípios religiosos.
2. A interdependência e complementariedade das noções de Estado Laico e Liberdade de Crença e de Culto são premissas básicas para a interpretação do ensino religioso de matrícula facultativa previsto na Constituição Federal, pois a matéria alcança a própria liberdade de expressão de pensamento sob a luz da tolerância e diversidade de opiniões.
3. A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também as que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a Democracia somente existe baseada na consagração do pluralismo de ideias e pensamentos políticos, filosóficos, religiosos e da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo.
4. A singularidade da previsão constitucional de ensino religioso, de matrícula facultativa, observado o binômio Laicidade do Estado (CF, art. 19, I)/Consagração da Liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI), implica regulamentação integral do cumprimento do preceito constitucional previsto no artigo 210, §1º, autorizando à rede pública o oferecimento, em igualdade de condições (CF, art. 5º, caput), de ensino confessional das diversas crenças.
5. A Constituição Federal garante aos alunos, que expressa e voluntariamente se matriculem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa e baseada nos dogmas da fé, inconfundível com outros ramos do conhecimento científico, como história, filosofia ou ciência das religiões.
6. O binômio Laicidade do Estado/Consagração da Liberdade religiosa está presente na medida em que o texto constitucional (a) expressamente garante a voluntariedade da matrícula para o ensino religioso, consagrando, inclusive o dever do Estado de absoluto respeito aos agnósticos e ateus; (b) implicitamente impede que o Poder Público crie de modo artificial seu próprio ensino religioso, com um determinado conteúdo estatal para a disciplina; bem como proíbe o favorecimento ou hierarquização de interpretações bíblicas e religiosas de um ou mais grupos em detrimento dos demais.
7. Ação direta julgada improcedente, declarando-se a constitucionalidade dos artigos 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/1996, e do art. 11, § 1º, do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, e afirmando-se a constitucionalidade do ensino religioso confessional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. (destaques nossos).
Em referido julgamento, o voto do Ministro DIAS TOFFOLI ponderou que “o modelo de laicidade adotado no Brasil, portanto, compreende uma abstenção por parte do Estado, pois obsta que o Poder Público favoreça corporações religiosas, prejudique indivíduos em decorrência de suas convicções e impeça a liberdade de expressão religiosa. Mas abrange também, por expressa previsão constitucional, condutas positivas que o Poder Público deve tomar para assegurar a liberdade religiosa” (destaque nosso).
Parece claro que o entendimento mais balizado inclina-se para a conciliação entre a laicidade e a garantia fundamental da liberdade religiosa, garantia esta que contempla não só a não restrição de direitos por motivos de religião e o livre exercício dos cultos religiosos, mas também o direito de professar publicamente a fé e reunir-se livremente para este fim; define a laicidade no Brasil como a não adoção pelo Estado de uma religião oficial e de uma conduta de não crença, resguardando a todos os cidadãos que possam exercer pública e livremente o seu culto ou pensamento, segundo suas próprias consciência e convicções.
Nesse sentido, assim como no caso julgado pelo E. Supremo Tribunal Federal, no qual se entendeu constitucional o opcional curso de ensino religioso nas escolas públicas, a pretensão da Presidência de instalar um Espaço Ecumênico nas dependências da sede da Câmara, para o livre e facultativo exercício de quaisquer manifestações religiosas, de crença ou espirituais, vai ao encontro do dever do Estado de proporcionar meios para que se lide tanto com o pluralismo religioso quanto com a não religiosidade, de maneira saudável e inclusiva, sem privilegiar ou desprestigiar qualquer forma de religião ou crença ou ausência delas.
Nesse sentido, é importante destacar que o uso de espaço na sede da Edilidade paulistana para manifestações de cunho religioso já foi objeto de apreciação tanto pelo Ministério Público, em sede de inquérito civil, como pelo Judiciário, por ocasião de julgamento de Ação Civil Pública.
Com efeito, no bojo do Inquérito Civil n. 14.0739.0006590/2016-0, constatando a ausência de auxilio financeiro a igrejas ou a seus representantes, o Ministério Público de São Paulo concluiu que tais eventos não significam relação de dependência ou de aliança com representantes de denominações religiosas, não havendo ato de improbidade administrativa por parte de vereadores que solicitam o espaço para eventos de índole religiosa.
Ademais, ao julgar a Ação Civil Pública n. 1033260-33.2016.8.26.0053, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo, confirmando sentença de improcedência de primeiro grau, ementou:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Cultos religiosos nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo. Ato administrativo autorizado por meio de ato normativo interno, desde que haja requerimento prévio por parte do vereador e assinatura em termo de responsabilidade para cada evento. Autorização e utilização franqueada a todos os vereadores que desejem o espaço público para atividades de natureza privada destinada aos seus convidados. Por conseguinte, a mera autorização de utilização, como também a própria finalidade da reserva (liturgia na sala, auditório ou hall do térreo), não representam discriminação a qualquer credo religioso, nem tampouco impõem a prática de qualquer religião ou ofendem os ateus e agnósticos, preservando-se, assim, a laicidade do Estado. Objeto da ação que não coincide com os objetivos sociais da parte autora. Carência da ação reconhecida. Manutenção da r. sentença, por outro fundamento RECURSO NÃO PROVIDO. (TJSP, Ap. Cível 1033260-33.2016.8.26.0053, Rel. Min. JARBAS GOMES, j. 23/08/2018)
Outrossim, como o encaminhamento a esta Procuradoria já elucidou, já existem espaços ecumênicos em outros prédios públicos, como na XXXXXXXXXXX e na XXXXXXXX, e, ainda, no XXXXXXXXXX e no XXXXX, hospital ligado ao XXXXXXXXX, todos objetivando a reserva de um ambiente para manifestações religiosas plurais, atos de livre reflexão, oração, meditação e fé.
Por todo o exposto, conclui-se que não só há amparo jurídico para a instalação de um Espaço Ecumênico nas dependências da Câmara Municipal de São Paulo, uma vez que, como o termo ecumênico (“universal”) sugere, destina-se a salvaguardar a liberdade de crença, de religião e outras formas de sincretismo religioso, sem privilegiar ou desprestigiar quaisquer delas; mas também, não há óbice constitucional ou legal à medida, já que propiciar o pluralismo religioso em espaço público não viola a laicidade do Estado, que segue mantendo a neutralidade, sem adotar uma religião oficial ou uma conduta antirreligiosa, tampouco impô-las a qualquer pessoa.
Em decorrência, sugere-se em anexo minuta de Projeto de Resolução, nos termos do artigo 237, parágrafo único, inciso I, do Regimento Interno da Edilidade, para a criação do Espaço Ecumênico pretendido, limitando sua frequência aos parlamentares e servidores da Casa apenas porque são os termos dos projetos semelhantes encaminhados no expediente, o que não obsta, a critério do proponente, que sugira o acesso a qualquer frequentador do próprio municipal, procedendo-se as devidas alterações no Projeto e na Justificativa.
É o entendimento que submeto à apreciação superior.
São Paulo, 08 de maio de 2019.
DJENANE FERREIRA CARDOSO ZANLOCHI
Procuradora Legislativa – RF 11.418
OAB/SP n. 218.877