Parecer ADM nº 36/2019
Ref.: Memorando SGP-12 nº 24/2019
TID nº 182994417
Assunto: Correção de numeração de folhas irregular
Senhora Procuradora Legislativa Supervisora,
I – DA CONSULTA
Cuida o expediente de consulta acerca do modo de correção de numeração de folhas irregular. Segundo a SGP.12, os autos do Projeto de Lei 695/2013 (Lei Orçamentária Anual de 2014) apresentam erro na sequência das folhas 4.746 a 6.063 e, tendo em vista a possibilidade de regularização por meio de certidão em processos pertinentes a Comissões Parlamentares de Inquérito, conforme Ato 1.124/2010, questiona-se se tal poderia ser aplicado também ao caso em exame.
É o relatório. Opino.
II – DA FUNDAMENTAÇÃO
Como é cediço, o poder é uma característica do Estado e, embora seja uno e indivisível, é largamente difundida a ideia de três “poderes” distintos, divisão feita através da atribuição de cada uma das funções governamentais a órgãos específicos. A separação funcional, entretanto, não é absoluta. A Constituição Federal diz que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, e, ao definir as respectivas atribuições, “confere predominantemente a cada um dos Poderes uma das três funções básicas, prevendo algumas interferências, de modo a assegurar um sistema de freios e contrapesos” . Assim é que o Poder Legislativo, por exemplo, além de sua função precípua de legislar, exerce também funções administrativas (como as decorrentes dos poderes hierárquico e disciplinar sobre seus servidores) e judicantes (como no caso de julgamento do Chefe do Executivo por crimes de responsabilidade).
Nessa esteira, no âmbito desta Edilidade, o Ato 1.124/2010, que institui o Manual de Processos da Câmara Municipal de São Paulo, fixando procedimento a ser observado no recebimento de documentos e na autuação de processos, estabelece que suas disposições se aplicam tanto a processos legislativo, ou seja, na documentação de atos praticados na função legiferante, quanto a processos administrativos, referentes a atos praticados enquanto Administração Pública. Uma das disposições, objeto do expediente, se refere à numeração irregular dos autos:
6. NUMERAÇÃO IRREGULAR DAS FOLHAS DO PROCESSO
6.1 Ao receber um processo, a Unidade deve conferir a sequência numérica da paginação da última juntada. Se for constatada alguma falha na numeração, o processo deve ser devolvido à Unidade que o remeteu.
6.1.1 Em casos excepcionais em que não se possa retardar por muito tempo a tramitação do processo, pode-se fazer um registro em cota do erro ou irregularidade de numeração ocorridos dando prosseguimento à tramitação e recomendando o retorno do processo o mais brevemente possível à Unidade que cometeu o erro para que esta possa corrigi-lo. No entanto, é sempre preferível corrigir o erro antes de qualquer tramitação e evitar a redação deste tipo de cota.
6.2 É de responsabilidade do superior imediato ou, na falta deste, da autoridade de nível hierárquico igual ou superior a regularização da numeração de folhas de processos cuja assinatura ou carimbo sejam de ex-servidor ou de servidor afastado.
6.3 Ao se verificar o erro, o número incorreto deve ser riscado com um traço, o número correto da folha deve ser colocado ao lado e a numeração deve ser rubricada pelo servidor responsável pela correção, conforme modelo 8. Não se deve escrever por cima do número anterior. Também aqui, é proibido assinar por outra pessoa.
6.4 O servidor responsável pela correção fará não apenas a correção do seu erro, mas também a correção de erros de numeração subsequentes que forem decorrentes do seu erro.
6.5 No final da correção, o servidor deve fazer um termo de regularização informando o intervalo de folhas corrigidas, conforme modelo 9, a ser juntado na sequência natural das páginas do processo.
6.5.1 No caso específico dos processos legislativos referentes a Comissões Parlamentares de Inquérito, uma vez que o Secretário de Comissão é responsável pela juntada dos documentos e que estes processos normalmente são divididos em grande número de volumes, não é necessário corrigir cada folha do processo. Como exceção, neste caso é permitido ao responsável pela juntada certificar todas as ocorrências de irregularidades no conjunto do documento em uma folha de informação e registrando qual o número correto da última folha do processo antes de encaminhá-lo para o arquivamento.
Observa-se da dicção legal que, havendo numeração irregular de folhas, caberá ao servidor, numa folha, riscar o número, colocar o número correto e rubricá-lo, procedendo-se da mesma forma nas folhas subsequentes. A única exceção, prevista no item 6.5.1, é a certificação da irregularidade mediante inserção de uma folha, restrita a processos legislativos referentes a Comissões Parlamentares de Inquérito.
Processo, segundo a doutrina, é sempre forma, instrumento, modo de proceder. Neste sentido amplo, abrangem-se “os instrumentos de que se utilizam os três Poderes do Estado – Judiciário, Legislativo e Executivo para a consecução de seus fins”. A partir dessa concepção, explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o processo se apresenta como “uma série de atos coordenados para a realização dos fins estatais”, classificando-se em processo legislativo, processo judicial e processo administrativo, cada qual “sujeito a determinados princípios próprios, específicos, adequados para a função que lhes incumbe” .
Aqui cabe uma observação. Embora processos legislativo e administrativo sejam distintos, o Ato 1.124/2010 deu-lhes tratamento uniforme. De fato, mesmo o processo legislativo requer disciplina acerca de documentação de atos praticados, incluída a numeração de folhas, e tramitação de autos, cujas normas são de natureza administrativa. Daí que à Mesa Diretora compete dispor sobre a organização e o funcionamento da Câmara Municipal, nos termos dos arts. 14, III, e 24, da Lei Orgânica do Município, o que abrange superintender os serviços administrativos, ex vi do art. 13, II, do Regimento Interno.
Processo legislativo consiste num conjunto de normas que disciplinam os atos e os procedimentos a serem obedecidos pelo Legislativo na criação de normas. A Constituição Federal preconiza uma série de atos e fases (iniciativa, emenda, discussão, votação, sanção ou veto, promulgação e publicação) tendentes à criação das espécies normativas, tal qual faz a Lei Orgânica do Município de São Paulo nos arts. 34 e seguintes. Tais procedimentos podem ser classificados em comum e especial. O comum é subdividido em ordinário, que é a tramitação do projeto passando por todas as fases e sem prazo definido; sumário, caracterizado pela existência de prazos para a deliberação pelo Legislativo; e abreviado, em que projetos são aprovados pelas Comissões, sem apreciação pelo Plenário. Já o especial regula a tramitação que não segue totalmente os padrões da aprovação, como é o caso da lei orçamentária .
Porquanto se trata de uma atividade social desenvolvida por cidadãos que representam o povo, o processo legislativo tem natureza interdisciplinar: sob aspecto jurídico, é a forma pela qual se geram normas, ao mesmo tempo em que é conformado por elas; sob aspecto político, é uma arena em que detentores de Poder competem e cooperam em nome de grupos de interesse da sociedade; e sob aspecto técnico, é a ordenação de trabalhos sob determinados ritos, imprescindíveis ao cumprimento de papéis de garantias democráticas . Não obstante a factível fundamentação da SGP.12 – duração razoável do processo, economia processual e instrumentalidade das formas –, não é possível aplicar princípios próprios do processo judicial ao processo legislativo sem o curial sopesamento de outros princípios aplicáveis, decorrentes da complexidade que lhe é inerente.
Com efeito, sob a ótica jurídica, certos princípios tipicamente processuais não são aplicáveis ao processo legislativo, como contraditório e ampla defesa, imparcialidade, inafastabilidade, duplo grau de jurisdição; por outro lado, aplicam-se outros, inclusive mencionados no expediente ora em análise. Fora da esfera processual, frise-se que o processo legislativo envolve a presença dos representantes do povo de maneira proporcional, a necessidade de separação de Poderes e a atribuição da função institucional legiferante a um órgão, e a legalidade como regedora da produção normativa . Trata-se de campo propício para a atuação parlamentar, a negociação em busca do consenso, a ordenação para que os trabalhos das casas legislativas transcorram com disciplina e preservação das prerrogativas dos parlamentares, entre outros elementos que inexistem num processo judicial.
O caso em apreço apresenta peculiaridades ainda maiores do que demais projetos de lei porque, sendo uma lei orçamentária, reúne uma multiplicidade de interesses da sociedade paulistana que constitui fonte fundamental para direcionamento de ações ordenadas à satisfação de necessidades públicas. O orçamento já não é mais concebido como mera peça contábil, contendo previsão de receitas e autorização de despesas. De acordo com Régis Fernandes de Oliveira:
“Com a assunção de novas responsabilidades, a estrutura do Estado Moderno cede a imperativos de boa administração. Já não bastam boas intenções. O Estado, por meio de seus governantes, tem o dever de planificar a peça orçamentária, de forma a identificar a intenção de cumpri-la. Não pode estabelecer previsões irreais ou fúteis, apenas para se desincumbir de determinação constitucional. A peça orçamentária há de ser real.
A positivação não só do ideário político, mas da concretude da peça orçamentária, passa a vincular a ação administrativa e a ação política. As finalidades que forem inseridas na peça orçamentária deixam de ser mera ação governamental, mas identificam a solidez de compromissos com o cumprimento dos objetivos ali consignados”.
A numeração de folhas, assim, não tenciona a apenas evitar fraudes. As particularidades contidas no processo legislativo realizam a vontade popular, ora por meio da atuação parlamentar de representantes do povo, ora pela participação direta da sociedade em proposituras legislativa ou debates em audiências públicas, ora até mesmo pelo controle social. A feição democrática que permeia toda a tramitação leva à imperiosa observância da formalidade, a qual não é só uma garantia a favor do Poder Legislativo, notadamente na preservação das prerrogativas parlamentares e cumprimento de ritos, mas também dos cidadãos, como um direito à participação e ao controle das atividades legislativas.
É nesse contexto que o Ato 1.124/2010 deve ser interpretado. Como regra, a paginação irregular de folhas é solucionada pela aposição de traço no número incorreto e pela remuneração porque é a forma pela qual a Mesa Diretora desta Edilidade entendeu mais seguro para preservar os valores envolvidos. Sobretudo num processo de lei orçamentária, em que ficam consolidados todos os interesses da sociedade sobre os mais diversos temas. Restaram excepcionados tão-só os processos das Comissões Parlamentares de Inquérito, porquanto, segundo o Ato, “o Secretário de Comissão é responsável pela juntada dos documentos e que estes processos normalmente são divididos em grande número de volumes”.
A certificação de ocorrência de irregularidades, como meio de sanar o problema relatado, é medida de exceção, não comporta interpretação extensiva e abrange exclusivamente aquelas situações que se subsumam à prescrição legal. Do contrário, uma disposição excepcional poder-se-ia transformar em regra geral, levando à subversão do ato normativo. Ainda nos tempos do Código Civil de 1916, cujas disposições iniciais regulavam a matéria hoje objeto da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Carlos Maximiliano já ensinava:
“O Código Civil explicitamente consolidou o preceito clássico – Exceptiones sunt strictissimo e interpretationis (“interpretam-se as exceções estritissimamente”), no art. 6° da antiga Introdução, assim concebido: “A lei que abre exceção a regras gerais, ou restringe direitos, só abrange os casos que especifica” (…) As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente. Os contemporâneos preferem encontrar o fundamento desse preceito no fato de se acharem preponderantemente do lado do princípio geral as forças sociais que influem na aplicação de toda regra positiva, como sejam os fatores sociológicos, a Werturteil dos tedescos, e outras”.
À vista do entrave hermenêutico, o efeito prático buscado pela SGP.12 neste expediente só pode ser alcançado pela edição de novo Ato pela Mesa Diretora. Somente o órgão superior da Administração Pública pode ponderar os princípios em conflito e decidir, dentre as múltiplas alternativas possíveis, aquela que atende melhor aos interesses desta Casa e da sociedade. Atualmente, abre-se exceção à correção de folhas uma por uma a apenas processos de Comissões Parlamentares de Inquérito; nada obsta, porém, que se decida alargar a exceção ou até convertê-la em regra. Enquanto não houver a alteração formal do Ato 1.124/2010, é vedado ao intérprete fugir de sua diretriz.
III – DA CONCLUSÃO
Posto isso, entendemos que o item 6.5.1 do Manual de Processos da Câmara Municipal de São Paulo, por constituir medida excepcional, merece interpretação restritiva, não sendo aplicável a hipóteses fora do que prescreve. A correção de numeração de folhas irregular dos autos do Projeto de Lei 695/2013 e de qualquer outro processo legislativo deve seguir ao rito dos itens 6.3, 6.4 e 6.5.
É o parecer que submeto ao elevado descortino de Vossa Senhoria.
São Paulo, 7 de maio de 2019.
Renato Takashi Igarashi
Procurador Legislativo
OAB/SP 222.048