TID n. 18217406
Ref. Memo SGA.1 n. 48/2019
Assunto: Instalação de câmeras no CEI – Centro de Educação Infantil da CMSP e de plataforma digital para acompanhamento pelos pais das atividades pedagógicas propostas e desenvolvidas na unidade
Parecer ADM n. 35/2019
Sra. Dra. Procuradora Legislativa Supervisora,
Trata-se de memorando enviado pela Secretaria de Recursos Humanos da Casa, pelo qual se solicita a instalação de câmeras no CEI – Centro de Educação Infantil da CMSP e o desenvolvimento de plataforma digital em que os pais possam acompanhar por meio da intranet e/ou internet as atividades pedagógicas propostas e desenvolvidas na unidade.
A Secretaria Geral Administrativa, pontuando que embora o pedido não esclareça especificamente os locais onde a instalação das câmeras é pretendida, a indicação de que a finalidade é possibilitar o acompanhamento pelos pais das atividades pedagógicas sugere a instalação nas salas de aula, solicita a análise das implicações jurídicas e eventuais cautelas necessárias relacionadas à pretensão.
Juntou-se ao expediente cópia de voto em separado do Exmo. Des. Aguilar Cortez, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2113734-65.2018.8.26.0000 pelo C. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo.
É o relato do necessário. Passa-se a opinar.
Em suma, cabe à presente manifestação a análise das eventuais implicações jurídicas decorrentes da instalação de câmeras no CEI desta Casa e no desenvolvimento de plataforma digital para acompanhamento pelos responsáveis das atividades desenvolvidas junto às crianças que frequentam a unidade.
Primeiramente é importante destacar que a prática pretendida, como expressamente descrito no pedido, visa ao acompanhamento pedagógico das atividades desenvolvidas no CEI pelos pais e responsáveis pelas crianças. Na toada das justificativas apresentadas, não se intenta com a implementação das ferramentas o monitoramento de segurança do local.
Tal premissa é relevante, como se aprofundará a seguir, para afastar a aplicação integral, pura e simples dos precedentes jurisprudenciais que já se tem notícia, como o acostado ao expediente, uma vez que tratam de monitoramento para fim de segurança.
Feito isso, passa-se à análise solicitada.
1. Da natureza jurídica do ambiente em questão
O ambiente onde se pretende a instalação de câmeras para monitoramento de acesso aos pais e responsáveis diz respeito ao Centro de Educação Infantil da Câmara Municipal de São Paulo – CEI, instituído pelo Ato CMSP n. 1327/2016, tendo por finalidade conferir atendimento pedagógico aos filhos, enteados ou crianças que estejam sob a guarda legal ou tutela de Vereadores e de servidores públicos da Edilidade paulistana ou, havendo vagas remanescentes e autorização da Mesa da Câmara, de servidores públicos que prestem serviços junto a qualquer unidade administrativa municipal localizada na circunscrição da Subprefeitura da Sé .
Trata-se, pois, de órgão integrante da estrutura administrativa da Edilidade paulistana, configurando-se o ambiente em que instalado verdadeiro espaço público, destinado ao serviço público de atendimento pedagógico às crianças de responsabilidade legal de seus servidores públicos e Edis.
Conclui-se, assim, que possui natureza jurídica de ambiente público, premissa relevante para a análise de todo o ordenamento jurídico aplicável à situação sub examine.
2. Da proteção à imagem
A proteção à imagem, enquanto direito de personalidade, é consagrada em nosso ordenamento jurídico nos artigos 5º, incisos V e X, da Constituição Federal e 20, caput, do Código Civil:
Art. 5º (…)
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
(…)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (destaques nossos)
Observa-se que a proteção diz respeito ao aspecto material da imagem, isto é, à concretização da imagem para o mundo exterior, por meio de fotografias ou vídeos, por exemplo:
Ao se definir a imagem como um direito da personalidade, cuidou-se de evidenciar, com respaldo na lição de Walter Moraes, que ela ‘constitui o sinal sensível da personalidade’, porque ‘traduz para o mundo exterior o ser imaterial da personalidade, delineia-a, dá-lhe forma’.
(…)
Enquanto a imagem pensada corresponde ao aspecto imaterial da pessoa, a imagem concretizada por algum meio de comunicação (pintura, fotografia, etc.) equivale ao seu aspecto material, sendo que, nesta condição, além de autônoma e distinta daquela, passa a revelar interesse de proteção pelo direito.
(…)
Assim, se no convívio social ninguém pode impedir que outras pessoas tenham a visão da sua figura, que constitui a imagem pensada (aspecto imaterial), na medida em que esta venha a ser captada ou reproduzida por outrem, através de qualquer meio artístico ou mecânico, que representa a imagem pintada (aspecto material), caberá ao respectivo titular o direito de opor-se à divulgação, ressalvadas as hipóteses legais de limitação desse direito.
Em suma, o fundamento do direito à imagem consiste na faculdade que o indivíduo tem de se expor ou de se ocultar, conforme a sua vontade, possuindo a livre disponibilidade de impedir que outros se apropriem indevidamente da sua imagem, conferindo-lhe divulgação não desejada pelo retratado.
“A imagem não deve ser compreendida tão somente como a representação de uma pessoa, mas também como a forma pela qual ela é vista pela coletividade” .
Pode-se concluir, assim, que o ordenamento, desde o patamar constitucional, preocupou-se em resguardar o direito das pessoas quanto à sua imagem, sendo a regra sua inviolabilidade e a exceção sua publicação, exposição ou utilização quando autorizadas pelo titular ou necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, ou, ainda, quando em conflito com outro direito ou garantia de igual importância constitucional, como se aprofundará com mais cuidado no item 4.
3. Da proteção à imagem das crianças
Sendo um direito da personalidade, a proteção à imagem igualmente abarca as crianças. Mas não é só. Os direitos das crianças e adolescentes gozam de status especialíssimo, merecendo regramento consolidado na Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, além de previsão constitucional específica do dever de sua proteção, já que vulneráveis.
Com efeito, dispõe o artigo 227, da Constituição Federal que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O ECA estabelece, ainda, que:
“Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
(…)
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. (destaques nossos)
Sendo assim, e na esteira da regra geral de uso da imagem disposta no artigo 20 do Código Civil já citado, a eventual utilização da imagem de crianças, como regra, dependerá da autorização de seus responsáveis legais, no pleno exercício de poder familiar ou outro decorrente de guarda ou tutela, desde que atendidos os preceitos protetivos especiais, sempre atentos ao princípio do melhor interesse da criança , decorrente do princípio geral da proteção integral .
4. Das mitigações permitidas ao direito à imagem
Como já introduzido no item 2, além da hipótese ordinária de prévia autorização do próprio titular ou de seu responsável, o direito de proteção à imagem, ainda que goze de status constitucional, não é absoluto, podendo sofrer limitações em confronto com outros interesses, notadamente os de mesma ordem de importância hierárquica.
É o que ocorre, por exemplo, com o direito à informação, estabelecido no artigo 5º, inciso IX, da Carta Magna:
“IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Nesse sentido, estando o direito à informação também dentre os direitos fundamentais, como regra, ponderando-se-o diante da proteção à imagem segundo o princípio da concordância prática , a Jurisprudência pátria tem se posicionado sobre a prevalência do direito à informação de interesse público, restrito, obviamente, ao limite da não-ofensa ou dano material ou moral ao titular da imagem:
Indenização – Danos morais e à imagem – Abuso à liberdade de informação jornalística – Inocorrência – Se os fatos desagradáveis são verídicos, não há como impedir que a imprensa os divulgue ou seja responsabilizada por ter noticiado o que infelizmente ocorreu, porque, assim procedendo, não estará praticando nenhum abuso, pois não age com culpa – Pertinência da matéria jornalística divulgada com a pessoa cuja imagem é reproduzida na ilustração do noticiário – Recurso provido” (TJSP, Apelação n. 92.669-4/5, Rel. Guimarães e Souza, j. 22.02.2000) – grifos nossos.
Recurso redistribuído com base na Resolução n.º 542/2011. Meta 2 observância do princípio da duração razoável do processo.- Indenização por danos morais. Apelante ingeriu bebida alcoólica, bem como conduzia veículo. Situação fática demonstra a ocorrência de atropelamento. Matéria narrada se limita exclusivamente ao episódio. Fotografia do recorrente originária de local público, apenas dá ênfase à reportagem. Ausência de afronta ao direito de imagem. Interesse público se faz presente. Susceptibilidade exacerbada do apelante não dá suporte à sua pretensão. Apelo desprovido. (TJSP 0052518-94.2005.8.26.0000, Relator: Natan Zelinschi de Arruda, Data de Julgamento: 04/08/2011, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/08/2011) –grifos nossos.
Inobstante, em relação a crianças e adolescentes, referida mitigação não é aceita, situação em que, mesmo diante de informação de interesse público, sua imagem deve ser protegida e resguardada, recomendando-se, conforme o caso, sua ocultação no bojo geral da informação a ser divulgada, em prevalência da proteção integral da criança e do adolescente:
Assim entende o Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, Mário Luiz Ramidoff :
A “transparência pública” deve ceder lugar à proteção integral da criança e do adolescente que se envolveram num evento infracional, haja vista que a sua vulnerabilidade material decorrente da condição peculiar de desenvolvimento se acentua com o próprio cometimento de condutas conflitantes com a lei […].
E nesse sentido optou o legislador:
ECA:
Art. 143. É vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional.
Parágrafo único. Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome.
Igualmente, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça :
ADMINISTRATIVO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)– PICHAÇÃO – NOTÍCIA EM JORNAL ENVOLVENDO MENORES COMO AGENTES DE CONDUTAS ILÍCITAS – AUTORIZAÇÃO DO JUIZ DA INFÂNCIA E JUVENTUDE – INEXISTÊNCIA – SANÇÃO ADMINISTRATIVA – LEI 8.069/90, ART. 247 – PRECEDENTES STJ. – É vedado aos órgãos de comunicação social a divulgação total, ou parcial, de atos ou fatos denominados infracionais atribuídos a criança ou adolescente, sem a devida autorização do MM. Juiz da Infância e da Juventude. – Sendo de conhecimento da imprensa a existência de representação da Curadora contra os menores, por danos ao patrimônio público, descabe a alegação de inocorrência de ato infracional a justificar a conduta do recorrente. – “A criança e o adolescente têm direito ao resguardo da imagem e intimidade. Vedado, por isso, aos órgãos de comunicação social narrar fatos, denominados infracionais, de modo a identificá-los.” (REsp. 55.168/RJ, DJ de 9.10.1995). – Recurso especial não conhecido.
A outra mitigação permitida ao direito à imagem diz respeito a atos que visem a segurança pública.
A segurança, além de um direito em si, tem como objetivo precípuo proteger qualquer tentativa de lesão à vida, à integridade física e ao patrimônio das pessoas, direitos que também são garantidos de maneira fundamental pela Carta Magna em seu artigo 5º, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”.
Assim, também sob a técnica da concordância prática, é aceita amplamente pela Jurisprudência a limitação do direito à imagem pela garantia do direito à segurança, desde que razoavelmente respeitadas a honra, a imagem, a privacidade e a intimidade das pessoas, ressalvado sempre o direito à indenização.
Caso clássico desde tipo de concordância prática é o monitoramento de segurança por câmeras, limitando a Jurisprudência aos espaços de uso comum, evitando-se sua utilização em locais onde se possa devassar a intimidade e a privacidade das pessoas.
Recentemente, a Jurisprudência, no âmbito civil e trabalhista, posicionou-se pela possibilidade de monitoramento de segurança por câmeras no interior de salas de aula.
O E. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, analisando, em grau de recurso, a questão posta na Ação Civil Pública n. 0020494-38.2014.5.04.0007, que impugnava regra da Escola Maternal e Jardim de Infância Castelinho S/S LTDA. (escola particular) que instituiu sistema de monitoramento por câmeras nas salas de aula, assim decidiu, por maioria de votos:
(…)
Ainda que ponderáveis os fundamentos da Presidente, divirjo por considerar a utilização de uso das câmeras em sala de aula que em nada agride ou compromete a efetividade dos princípios educacionais ou que produza qualquer interveniência na atividade do professor. Em tempos de muita violência como o que estamos acostumados a conviver, a instalação de câmeras de segurança em sala de aula em nada viola a intimidade dos alunos ou professores, por ser constituir em garantia da própria incolumidade física destes. (…)
É certo que a Ré é uma escola infantil, o que em nada compromete a tese ora exposta, por também não ser raro que pais, muitas vezes, acusem professores de bater em alunos ou abusar destes, sem maior prova, a não ser o relato da criança. (…)
Com a devida vênia da Exma. Desembargadora Relatora, acompanho a divergência lançada pela Exma. Desembargadora Vania Mattos, adotando os mesmos fundamentos e acrescentando que:
A instalação de câmeras de vigilância em salas de aula, ao meu ver, não compromete a liberdade e autonomia necessárias para o desenvolvimento do trabalho do professor, não limita a sua atuação pedagógica, nem as relações entre os seus alunos. A presença de equipamentos de monitoramento e segurança atualmente fazem parte da rotina de qualquer pessoa que habita as cidades brasileiras. Infelizmente, a nossa realidade assim impõe.
No mesmo sentido, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo, na apreciação da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2113734-65.2018.8.26.0000, por maioria de votos, julgou constitucional a Lei Municipal n. 12.953/20118, de São José do Rio Preto:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 12.953, de 09 de maio de 2.018, que dispõe sobre a instalação de câmeras de monitoramento de segurança nas creches e escolas públicas municipais, inclusive dentro das salas de aula – Ofensas à intimidade e à privacidade não configuradas – Monitoramento e armazenamento das imagens para consulta, se necessário, diante de caso específico, que não ofende a intimidade de alunos e professores – Salas de aula que constituem espaço público, onde é desenvolvida atividade pública, que deve guardar respeito ao ordenamento jurídico, onde os que lá se encontram devem ter a mesma conduta, com ou sem monitoramento – Fator inibidor do aprendizado não verificado – Os direitos e garantias fundamentais podem ser relativizados, diante da necessidade de fiscalização e garantia da segurança envolvendo uma atividade pública de tamanha relevância – Ação improcedente.
Admite-se, assim, essa restrição no direito à imagem, em ambiente público ou privado, com objetivo de segurança, notadamente porque as imagens do monitoramento são de acesso muito restrito, só utilizadas em caso de justificada necessidade.
Isso fica muito claro no voto vencedor da ação em comento, onde se ponderou:
Outro enfoque a ser ressalvado é que o monitoramento não implica em exibição automática e em tempo real das imagens coletadas. Deste modo, não há exposição desmedida e gratuita da imagem das pessoas, mas apenas o armazenamento, cuja exibição será solicitada apenas em caso específico para se apurar evento certo que exija alguma investigação ou fiscalização. Não há, portanto, o uso indevido das imagens captadas a bel prazer daquele que comanda o banco de dados, de sorte que a intimidade e privacidade dos alunos e professores restam asseguradas.
Como bem ponderou a douta Procuradoria Geral de Justiça nesse ponto, “se houver uso indevido das imagens, extrapolando-se o propósito da lei, poderá haver violação ao direito de imagem. Contudo, no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade, descabe cogitar de qualquer vício”.
Trata-se de situação muito diferente da proposta no presente expediente, em que se pretende, ao que parece, a exibição automática e em tempo real das imagens coletadas, inclusive das crianças, para visualização pelos pais ou responsáveis, por meio de aplicativo, para finalidade única de acompanhamento pedagógico.
Assim, nota-se que o monitoramento por câmeras, para efeito de acompanhamento pedagógico, no interior de salas de aula de ambiente público, como o aspirado no caso em tela, não se enquadra nas restrições gerais à regra de proteção da imagem supraexpostas, razão pela qual algumas ponderações são necessárias.
Não se destinando a medida à segurança dos ambientes, inexiste a priori o precedente da limitação do direito à imagem citado acima. Configura-se, assim, a situação legal ordinária, como já existente em creches e berçários particulares: a de possibilidade jurídica, precedida, entretanto, da necessária autorização dos pais e responsáveis para filmagem e disponibilização das imagens pelo software, como pretendido.
Igualmente, no caso sob exame, como o fim visado é o acompanhamento pedagógico, deve-se indagar se a transparência almejada, que a princípio é de interesse comum, somente pode ser atingida por meio do monitoramento por câmeras; isto é, se as informações aos pais e responsáveis apenas podem ser prestadas, com a eficiência e a finalidade desejadas, por meio da exposição da imagem de crianças, já que tal tipo de acompanhamento pedagógico não é exigido por lei.
A indagação presta-se a analisar tanto a razoabilidade quanto a conveniência e oportunidade da medida proposta, o que somente poderá ser feito pela autoridade responsável, intentando a presente manifestação apresentar os elementos jurídicos relevantes para referida análise, notadamente os dispostos no item 6 a seguir, a fim de verificar a presença da prevalência do interesse público, outro requisito para o amparo jurídico da instalação da ferramenta pretendida.
5. Da liberdade de cátedra
Embora o caso em tela trate de monitoramento nas salas do Centro de Educação Infantil, ainda assim, como a própria intenção expressada no Memo SGA.1 n. 48/2019 externa, há um conteúdo pedagógico ministrado às crianças que lá frequentam, razão pela qual o tema da preservação da chamada liberdade de cátedra, prevista no artigo 206, inciso II, da Constituição Federal , merece igual atenção na situação analisada.
Recentemente, a Jurisprudência, ilustrada pelos precedentes citados no item acima , posicionou-se pela inexistência de ofensa ao referido princípio na hipótese de monitoramento por câmeras no interior das salas de aula.
No mesmo sentido, as Professoras Nina Ranieri e Letícia Antunes Tavares , interpretando a Jurisprudência contemporânea sobre o direito a educação, assim expuseram:
(…) quanto à liberdade de ensinar e aprender (CF, art. 206, inciso II), forma de manifestação do pensamento específica do magistério, o enunciado constitucional engloba uma dimensão objetiva e outra subjetiva. Esta diz respeito aos sujeitos do conhecimento; aquela se relaciona à liberdade do professor de escolher o objeto do ensino a transmitir, liberdade condicionada aos currículos escolares e aos programas oficiais de ensino (SILVA, 2014, p. 802). Conforme Pontes de Miranda (1947, p. 113) já alertava, não se pode confundir a liberdade de ensinar, que resulta da objetividade, da investigação da verdade, com o direito fundamental do indivíduo quanto à opinião. Para o autor o Estado contemporâneo tem de ser educativo e a liberdade de ensinar assume a característica de verdadeira garantia institucional.
E por esta razão, tendo em conta a objetividade desta garantia que é a liberdade de ensinar e aprender, não se deve encará-la como um direito absoluto, até porque está necessariamente vinculado às finalidades e programas da educação nacional (…)
Não restam dúvidas de que vigilância constante é fator inibidor da espontaneidade, podendo gerar artificialidade nas relações sociais. Trata-se de uma espécie de liberdade monitorada, que, de certo modo, se assemelha àquela abordada por Focault (2010, p. 191/194) ao tratar do Panóptico de Bentham, que se destinava a induzir à sensação de vigilância constante e à modificação de comportamentos, com vistas a assegurar o funcionamento do poder. Mas falar-se em restrição da citada garantia constitucional em razão da implementação deste mecanismo de segurança parece exagero. Não há evidências de lesão à liberdade de ensinar e aprender e, como salientado pelo TJSP no julgamento do caso supracitado, não se poderia falar em constrangimento ou censura à liberdade do professor ou aluno se estes praticam suas atividades de acordo com a legalidade.
Assim, a princípio, o videomonitoramento no interior das salas de aula, por si só, não constitui ofensa ao princípio da liberdade de cátedra, não havendo óbice quanto à pretensão sub examine quanto a esse aspecto.
6. Das condições para a exposição e responsabilidades advindas da medida proposta
Em suma, em uma análise superficial da intenção externada no Memo SGA.1 n. 48/2019, não sendo um caso comum de conflito de interesses de igual patamar constitucional, há amparo jurídico para a medida proposta, desde que, constatado o interesse público, a razoabilidade e a conveniência e oportunidade, sejam observadas algumas condições.
6.1. Do ponto de vista dos professores, pedagogos e demais trabalhadores:
No que tange aos professores e pedagogos responsáveis pelos serviços prestados pelo Centro de Educação Infantil – CEI da Câmara Municipal de São Paulo, nos termos do artigo 6º do Ato CMSP n. 1327/2016, bem como demais trabalhadores da unidade, a filmagem de suas atividades deverá ser precedida de aviso escrito e expresso de ambiente filmado.
Isso porque, muito embora a Jurisprudência do E. Tribunal Superior do Trabalho tenha se consolidado no sentido de o videomonitoramento do ambiente de trabalho fazer parte do poder fiscalizatório do empregador , tal circunstância não engloba situação como a ora analisada, em que haverá a disponibilização das imagens em tempo real a terceiros, isto é, pais e responsáveis pelas crianças frequentadoras do CEI.
Assim, por cautela, impõe-se a obrigação de se obter ciência prévia e por escrito dos professores e pedagogos expostos nas imagens, além de manter-se em todos os locais objetos de monitoramento aviso escrito de que se trata de ambiente monitorado.
6.2. Do ponto de vista das crianças:
Como já exposto no item 3, nos termos dos artigos 15 e 17 do ECA concomitantemente com o art. 20 do Código Civil, a utilização da imagem de crianças, como regra, dependerá da autorização de seus responsáveis legais, no pleno exercício de poder familiar ou outro decorrente de guarda ou tutela, descrevendo-se de maneira pormenorizada e precisa o uso e meio de divulgação que as imagens podem receber.
Nesse sentido, ao tratar do uso da imagem de crianças pelas escolas e da autorização necessária, o Professor Gustavo Ferraz de Campos Monaco ponderou:
Tal autorização deve ser clara e precisa. Vale dizer, é essencial que pais e responsáveis tenham plena consciência do uso que se fará de tais imagens. Nesse sentido, a autorização para uso das imagens dos alunos no cotidiano das salas de aula não pode fazer presumir ao autorizado que haja também um direito de veicularem fotos e vídeos nas redes sociais.
E essencial que a autorização seja livre, desimpedida e, mais que tudo, refletida. (…)
Assim, em se tratando de intenção de transmissão em tempo real das imagens a todos os pais e responsáveis e não havendo possibilidade de isolamento da imagem de uma ou outra criança, é condição imprescindível a obtenção de expressa anuência e todos os pais e responsáveis das crianças atualmente matriculadas no CEI.
No futuro, interiorizando-se o sistema de monitoramento por câmeras com transmissão em tempo real no Regulamento Interno do CEI, no ato da matrícula os pais e responsáveis das crianças que venham a frequentar a unidade já estarão concordando expressamente com o sistema, nos termos do artigo 7º, §7º, do Ato CMSP n.1327/2016, que estabelece:
“Na ocasião da efetivação da matrícula de novos alunos, os pais ou responsáveis legais serão chamados para uma entrevista obrigatória, oportunidade na qual receberão orientação sobre o Regulamento Interno, o Projeto Pedagógico e o Regime Educacional do Centro de Educação Infantil e deverão preencher termo próprio de ciência” (destaque nosso).
Observe-se, entretanto, que a anuência dos pais ou responsáveis é retratável a qualquer tempo, fundamentadamente, segundo os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança, o que poderá obstar o videomonitoramento, já que, como exposto acima, tratando-se de ambiente coletivo, a efetividade do sistema depende da anuência de todos os pais e responsáveis.
6.3. Da responsabilidade pelos acesso, uso e divulgação das imagens:
Por fim, inobstante o monitoramento por câmeras seja um sistema muito comum em creches particulares, há que se alertar para as responsabilidades civis e criminais da Câmara Municipal, não só pela captação, mas também pela permissão de acesso, uso e divulgação das imagens advindas do videomonitoramento pretendido.
Como regra, o uso de imagem não consentido ou mesmo o uso fora dos termos consentidos enseja indenização:
CONSTITUCIONAL. DANO MORAL: FOTOGRAFIA: PUBLICAÇÃO NÃO CONSENTIDA: INDENIZAÇÃO: CUMULAÇÃO COM O DANO MATERIAL: POSSIBILIDADE. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 5º, X.
I. Para a reparação do dano moral não se exige a ocorrência de ofensa à reputação do indivíduo. O que acontece é que, de regra, a publicação da fotografia de alguém, com intuito comercial ou não, causa desconforto, aborrecimento ou constrangimento, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse constrangimento. Desde que ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a Constituição, art. 5º, X.
II. – R.E. conhecido e provido. (RE 215.984/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 28.6.2002).
O STJ define o direito à imagem como “um incidente sobre um objeto específico, cuja disponibilidade é inteira de seus titular e cuja violação se caracteriza com o simples uso não consentido ou autorizado” (REsp 46.420-0/SP, RSTJ, v. 68, p. 169, 1995).
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CIVIL. CÂMARA DE VIGILÂNCIA BANCÁRIA. IMAGEM DE CLIENTE DE BANCO FORNECIDA IRREGULARMENTE PARA TERCEIRO. INEXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. LEI 105/2001. VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. OCORRÊNCIA. ART. 14 DO CDC. VÍCIOS NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO BANCÁRIO. FILMAGEM UTILIZADA EM PROCESSO CRIMINAL. ABSOLVIÇÃO DO ACUSADO POR FRAGILIDADE DE PROVA NA JUSTIÇA CRIMINAL. DANOS MORAIS, OCORRÊNCIA. SENTENÇA REFORMADA.
(…)
2. As filmagens captadas por câmaras de segurança instaladas no interior de agência bancária, medida imposta pela Lei 7.102/93, são confidenciais, constituindo abuso de direito divulgá-las a terceiros sem autorização da pessoa objeto da filmagem ou sem que haja comando judicial que a tanto determine.
(…)
5. Na hipótese, preposto da Caixa Econômica Federal cedeu, irregularmente, a terceiros, imagens da autora, filmada realizando saques em terminal localizado no interior da agência. Essas filmagens foram utilizadas pelo terceiro para subsidiar acusação de furto em processo criminal que movido contra a Autora (cliente da instituição financeira). Na correspondente ação criminal, foi proferida sentença, transitada em julgado, de absolvição, à anotação de não comprovação da autoria, dada a fragilidade da prova produzida. Assim, resta patente o prejuízo de ordem moral sofrido pela autora/apelante, valorado, neste caso, em R$ 10.000,00 (dez mil real), por se mostrar compatível com o estabelecido em casos análogos por este Tribunal.
6. Apelação a que se dá provimento para condenar a Caixa Econômica Federal ao pagamento: (I) de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a título de danos morais; e (II) de R$ 1.000,00 (mil reais) a título de honorários advocatícios. (TRF 1ª Região, 6ª Turma, Ap. Cível 0005166-47.2007.4.01.3801, Rel. Des. KASSIO MARQUES, p. 18/02/2015)
O cuidado vale para a imagem de quaisquer pessoas, professores, pedagogos, crianças. Mas, especificamente, quanto às crianças, em condição presumida de vulnerabilidade, a cautela deve ser ampliada.
Abordando situação de exposição de crianças e adolescentes em meios de comunicação, mas que se adequa plenamente a qualquer hipótese de divulgação de imagens, o Dr. David Cury Júnior expõe:
“A peculiar condição de pessoas em desenvolvimento exige que os profissionais de mídia estejam atentos à predominância dos interesses da criança e do adolescente, cabendo-lhes zelar pela preservação do bem-estar destas no momento da elaboração de uma notícia ou da produção de um comercial”.
Nesse sentido, posiciona-se a Jurisprudência:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. DIREITO À IMAGEM. USO INDEVIDO DA IMAGEM DE MENOR. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO. FOTOGRAFIA ESTAMPADA EM MATERIAL IMPRESSO DE PROPAGANDA ELEITORAL.
1. Ação indenizatória, por danos morais, movida por menor que teve sua fotografia estampada, sem autorização, em material impresso de propaganda eleitoral de candidato ao cargo de vereador municipal.
2. Recurso especial que veicula a pretensão de que seja reconhecida a configuração de danos morais indenizáveis a partir do uso não autorizado da imagem de menor para fins eleitorais.
3. Para a configuração do dano moral pelo uso não autorizado da imagem de menor não é necessária a demonstração de prejuízo, pois o dano se apresenta in re ipsa.
4. O dever de indenizar decorre do próprio uso não autorizado do personalíssimo direito à imagem, não havendo de se cogitar da prova da existência concreta de prejuízo ou dano, nem de se investigar as consequências reais do uso.
5. Revela-se desinfluente, para fins de reconhecimento da procedência do pleito indenizatório em apreço, o fato de o informativo no qual indevidamente estampada a fotografia do menor autor não denotar a existência de finalidade comercial ou econômica, mas meramente eleitoral de sua distribuição pelo réu.
6. Hipótese em que, observado o pedido recursal expresso e as especificidades fáticas da demanda, afigura-se razoável a fixação da verba indenizatória, por danos morais, no importe de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
7. Recurso especial provido. (STJ, REsp n. 1.217.422 – MG, 3ª Turma, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, j. 23/09/2014)
É imprescindível, pois, muita cautela no uso e na divulgação das imagens obtidas por meio do videomonitoramento. Como alerta BRASILEIRO e OLIVEIRA :
Torna-se prudente que seja feito um treinamento específico dos responsáveis pela análise das imagens e o conteúdo deve ter controle de acesso rígido, independentemente de ser uma câmera no ambiente público ou no privado. Apesar do aviso prévio de monitoramento, não se tem o direito de usar as imagens para qualquer outra finalidade a não ser aquela específica. Também se deve observar para que não haja exposição da pessoa titular da imagem ao ridículo, tampouco gerar algum tipo de perseguição, como, por exemplo, colocar a câmera vigiando apenas uma pessoa específica e não todos. (destaques nossos)
Do ponto de vista específico das crianças, o cuidado deve ser ainda maior, a fim de que não haja o acesso indevido das imagens por pessoas não autorizadas ou mesmo sua difusão na internet, seja por descuido do órgão e seus servidores, seja por fragilidades do aplicativo de acompanhamento em tempo real, o que pode colocar os vulneráveis em perigo extremo ou expor suas imagens a usos ilícitos e até criminosos, ensejando as devidas responsabilizações.
Nesse sentido opina MONACO sobre aspectos que podem ser transportados para a hipótese de vazamento de imagens oriundas de videomonitoramento:
A publicação de imagens nas redes sociais de uma escola é capaz de vincular a criança a um endereço (onde poderá ser localizada) e a um horário de entrada e outro de saída (limitando-se temporalmente o risco), com o que a segurança física e patrimonial das crianças põe-se sob ameaça.
Do ponto de vista coletivo, torna-se imperiosa a conscientização dos limites em que esse tipo de divulgação é admissível, bem como da zona de fronteira a partir da qual se resvala o uso indevido, que pode, inclusive, dar origem a eventual responsabilidade criminal dos gestores educacionais.
Torna-se, assim, imperiosa a tomada de todas as medidas necessárias – de orientação e tecnológicas – a impedir o acesso e divulgação indevidos das imagens decorrentes do videomonitoramento, incluindo-se a orientação não só do corpo técnico responsável pelas ferramentas de captação das imagens e de transmissão em tempo real, como também dos pais e responsáveis no uso do aplicativo, a fim de que fiquem cientes da responsabilidade sobre as imagens recebidas, não só de seus filhos e tutelados, mas de todas as crianças e demais pessoas filmadas, procurando-se evitar o vazamento de senhas de acesso e imagens.
7. Da conclusão
Ante o exposto, conclui-se que, constatada a prevalência do interesse público e analisada a razoabilidade e a conveniência e oportunidade da medida pela autoridade responsável, é juridicamente possível a instalação de câmeras no interior das salas de aula do CEI e a disponibilização das imagens aos pais e responsáveis por meio de aplicativo digital, para fim de acompanhamento pedagógico, nos termos supraexpostos e desde que observadas as seguintes condições:
7.1. ciência clara e expressa dos professores, pedagogos e demais servidores e prestadores de serviço que possam ser objeto das imagens do vídeo monitoramento, nos termos do item 6.1.;
7.2. aviso de ambiente monitorado em todos os locais objeto do videomonitoramento;
7.3. anuência clara e expressa dos pais e responsáveis, inclusive quanto ao uso das imagens, nos termos do item 6.2.
Reitera-se que a avaliação jurídica aqui esposada não induz diretamente a uma decisão, sendo certo que a análise do custo-benefício da adoção das ferramentas pretendidas, face à necessidade de observância das condições acima expostas, à possível alteração das circunstâncias e às responsabilidades decorrentes, caberá à Mesa, autoridade competente para tanto.
S.m.j., é o entendimento que se submete à apreciação superior.
São Paulo, 06 de maio de 2019.
DJENANE FERREIRA CARDOSO ZANLOCHI
Procuradora Legislativa – RF 11.418
OAB/SP n. 218.877