TID nº 18683286
Ref. Requerimento administrativo – XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
Assunto: Exclusão da GLIEP da base de cálculo da contribuição previdenciária ao IPREM
Parecer ADM nº 22/2020
Sra. Dra. Procuradora Legislativa Supervisora,
Trata-se de requerimento formulado pelo servidor XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX no sentido de excluir o valor recebido a título de GLIEP – Gratificação Legislativa de Incentivo à Especialização e Produtividade da base de cálculo da contribuição previdenciária, haja vista que se tornou não incorporável aos vencimentos após o advento da Emenda Constitucional nº 103/2019, ocasião em que ainda não havia completado 05 (cinco) anos de sua percepção.
A fim de instruir o feito, foram solicitadas informações acerca da situação processual da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 9048208-81.2008.8.26.0000, na qual se questiona a possibilidade de permanência da gratificação em questão, sendo certo que foi asseverado que ainda não há coisa julgada.
É o breve relato do necessário. Passo a opinar.
Antes de se adentrar o requerimento formulado em si, é importante analisar-se se a norma inserida no §9º do artigo 39 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 103/2019 vedou a permanência de vantagens como a GLIEP, como advoga o requerente.
Dispõe os termos da vedação imposta na novel redação incluída no §9º do artigo 39 da Carta Magna:
É vedada a incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo.
Por seu turno, o artigo 29 da Lei Municipal nº 14.381, de 07 de maio de 2007, estabelece:
Art. 29. Fica instituída a Gratificação Legislativa de Incentivo à Especialização e Produtividade – GLIEP, a qual poderá ser atribuída aos servidores da Câmara Municipal de São Paulo e aos servidores ou empregados públicos da Administração direta, indireta ou fundacional, Federal, Estadual ou de outros Municípios, colocados à disposição da Câmara, para prestar serviços conforme o “caput” do art. 31 da Lei nº 13.637, de 4 de setembro de 2003, nos termos do Anexo I desta lei..
(…)
- 5º A gratificação ora instituída torna-se permanente após a percepção por um período mínimo de cinco anos, nas seguintes condições:
I – poderão ser somados períodos contínuos ou descontínuos de percepção do mesmo ou diferente valor;
II – a permanência dar-se-á pelo maior valor percebido por período não inferior a um ano;
III – se o maior valor for percebido por período inferior a um ano, a permanência dar-se-á em relação àquele imediatamente inferior cuja percepção, somada à do maior, perfaça, no mínimo, um ano;
IV – declarada a permanência, se o servidor fizer jus a valor superior da mesma gratificação, receberá somente a diferença;
V – poderá ser tornada permanente a diferença entre o valor já tornado permanente e novo valor da mesma gratificação que venha a ser percebido por um período mínimo de um ano. – destaque nosso.
Observa-se que a norma não faz menção à incorporação, mas sim ao instituto da permanência, fenômenos esses diferentes entre si, como se denota em toda a legislação municipal.
Como exemplo pode-se citar o artigo 18[1] do Decreto nº 46.861/2005 que, em consonância com o que dispõe o artigo 1º, §§ 1º e 2º, da Lei Municipal nº 13.973/2005, faz distinção entre os institutos da incorporação e da permanência de vantagens à remuneração dos servidores.
Doutrinariamente a distinção entre os institutos nasce justamente das características inerentes à incorporação:
Para que essas vantagens passem a integrar os vencimentos, é necessário que a lei assim preveja: é a incorporação, mediante a qual a vantagem adere ao vencimento, não podendo ser suprimida dos vencimentos, salvo opção explícita do servidor. A lei poderá determinar a incorporação automática, como ocorre com o adicional por tempo de serviço; ou exigir tempo de percepção ou prever a incorporação progressiva, proporcional ao tempo de percepção. Se, no decurso da vida funcional, a mesma vantagem é recebida em diversos percentuais, a lei que permite a incorporação deverá definir o respectivo percentual. Os acréscimos pecuniários percebidos pelo servidor não podem ser computados nem acumulados para fins de atribuição de acréscimos ulteriores (CF, art. 37, XIV). (MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 281)
(…) “É ainda de Hely Lopes Meirelles a advertência denotando a existência de ‘vantagens irretiráveis’ (que assumem especial relevância para o debate sobre a irredutibilidade e o teto) adquiridas pelo desempenho efetivo da função (pro labore facto) ou pelo transcurso do tempo (ex facto temporis) em cujo núcleo se excluem as dependentes de trabalho a ser feito (pro labore faciendo), de um serviço a ser prestado em determinadas condições (ex facto officci) ou de sua anormalidade (propter laborem) ou em razão das condições individuais do servidor (propter personam)” (MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 86/87, n. 10)
Alguns estatutos funcionais preveem o denominado sistema de incorporação, pelo qual o servidor agrega ao vencimento-base de seu cargo efetivo determinado valor normalmente derivado da percepção contínua, por período preestabelecido, de certa vantagem pecuniária ou decorrente do provimento de cargo em comissão. Exemplifique-se com a hipótese em que o servidor incorpora o valor correspondente a 50% do vencimento de cargo em comissão, se nele permanecer dez anos ininterruptamente. Ou com a incorporação do valor correspondente a certa gratificação funcional se esta for percebida no mínimo por cinco anos. Seja como for, esse valor incorporado terá a natureza jurídica de vantagem pecuniária, por ser diverso da importância percebida em razão do cargo, mas, em última análise, reflete verdadeiro acréscimo na remuneração do servidor por seu caráter de permanência. Consumado o fato que a lei definiu como gerador da incorporação, o valor incorporado constituirá direito adquirido do servidor, sendo, portanto, insuscetível de supressão posterior pela Administração. O necessário, sem dúvida, é que a lei funcional demarque, com exatidão e em cada caso, qual a situação fática que, consumada, vai propiciar a incorporação; ocorrida a situação, o servidor faz jus à agregação do valor a seu vencimento-base. (…)
As vantagens pecuniárias devem ser acrescidas tomando como base o vencimento do cargo. Não podem os acréscimos pecuniários ser computados nem acumulados para o efeito de percepção de outros acréscimos. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª Edição, São Paulo: Atlas, 2012, p. 733/734)
Aliás, no âmbito desta Municipalidade, há muito se faz tal distinção, tendo surgido com o advento da Lei Municipal nº 10.442/1988, como bem explanado nos Pareceres desta Procuradoria de nº 088/2001 e nº 086/2002, ambos de autoria do Professor e Procurador Legislativo Dr. Antonio Rodrigues de Freitas Jr.:
Anteriormente ao advento da Lei 10.442/88, a única modalidade de indenização ficta conhecida por lei como veículo para ocasionar a insusceptibilidade de revogação de gratificações discricionárias consistia no instituto da incorporação. Como se sabe, ou se de deveria saber, a ocorrência da incorporação fazia incidir a parcela incorporada sobre o padrão do vencimento, de sorte não apenas que a gratificação incorporada tornava-se insusceptível de supressão como, no mesmo ato, que ao repercutir no padrão ensejava majoração do produto final da remuneração.
Foi precisamente colimando oferecer tratamento mais parcimonioso que se deu o advento da Lei 10.442/88. Daí a razão pela qual a proibição da incidência constar de parágrafo (nem preciso reiterar qual a função normativa de um parágrafo), e de parágrafo único do artigo que instituiu justamente a permanência, como instituto inovador no Direito Municipal de São Paulo. Diga-se de passagem: instituto originariamente restrito à figura da Gratificação de Gabinete e para essa idealizado.
Do exposto, evidencia-se, na boa fé interpretativa, que ao vedar “sua utilização, sob qualquer forma, para cálculo simultâneo que importe em acréscimo de outra vantagem pecuniária”, o endereço do verbo, vale dizer, seu objeto direto consiste na Gratificação “tornada permanente”. Aliás, permito-me esse desnecessário truísmo na intenção de enfatizar que a proibição do referido parágrafo único evitou conferir, ao ato de reconhecimento da permanência, os efeitos majoratórios até então ínsitos ao ato concessivo da incorporação desde aí já não mais aplicável à Gratificação de Gabinete. (Parecer nº 088/2001) – destaques nossos.
Em minha percepção, o problema resolveu-se não por via do art. 1º, parágrafo único, da Lei 10.442/88, mas em virtude do tratamento legal conferido às demais vantagens. Tenhamos presente que a dicção desse preceito objetivou, como acertadamente afirma o Anexo do Relatório GV, evitar que o ato declaratório de permanência viesse a ser tratado de igual modo que a incorporação. Assim sendo, a decisão do E. TCM, ao contrário do que se possa supor por uma leitura apressada, não determinou que a GG, ao se tornar permanente, viesse aderir ao padrão e a repercutir sobre todas as demais vantagens que sobre ele se calculassem. Considerando a autonomia legislativa da Câmara para dispor sobre suas gratificações, o Parecer que embasa a decisão do C. TCM ocupou-se de interpretar a forma de cálculo dessas últimas e houve por concluir o que determinou como correta fórmula de cálculo dos servidores do Legislativo (e TCM), sem qualquer distinção entre GG de todos aqueles servidores, com ou sem direito à permanência. Por sinal, não houvesse a figura da permanência, isso em nada alteraria as premissas por ele esposadas. O que fundamentou a decisão do C. TCM foram as normas destinadas a outras vantagens, diversas daquelas concedidas aos demais servidores do Executivo. (Parecer nº 086/2002) – destaque nosso.
Em outros pareceres desta Procuradoria também se pontuou a diferença entre os dois fenômenos no sistema remuneratório dos servidores do Município:
Consequentemente, vemos que ambos os benefícios – a incorporação prevista no art. 33 da Lei nº 9.296/81, e a permanência disciplinada pela Lei nº 10.442/88 e Resolução nº 06/93 – são legalmente previstos, sendo passíveis de serem obtidos pelos servidores deste Legislativo, desde que preenchidos os respectivos requisitos legais. Tratam-se de dois benefícios legalmente previstos, com objetos, critérios e requisitos distintos, mas com semelhante efeito em relação a cada respectivo objeto. Este efeito, como já visto, pode ser assim traduzido: a respectiva vantagem (na permanência, uma gratificação; na incorporação, o conjunto de vantagens próprias de um cargo) passa a integrar em definitivo a remuneração do funcionário. (Parecer nº 031/2003, de autoria do Procurador Legislativo Sebastião Rocha) – destaque nosso.
Ambos os benefícios, a incorporação prevista no art. 33 da Lei nº 9.296/81 (em que são incorporadas todas as vantagens do cargo) e a permanência, disciplinada pela Lei nº 10.442/88 (em que uma vantagem específica é tornada permanente) coexistem e são passíveis de serem adquiridos pelo funcionário do QPL, desde que preenchidos os requisitos próprios estabelecidos nas respectivas leis, não havendo incompatibilidade entre eles. (Parecer nº 9002/2003, de autoria do Procurador Legislativo Mário Sérgio Maschietto) – destaque nosso.
Observe-se, ainda, que a distinção entre os institutos foi reconhecida pelo E. Tribunal de Contas do Município, no TC nº 72.002.911.02-25, em ocasião na qual, entendendo não ser mais possível a incorporação da Gratificação de Gabinete após 05/06/1998 (EC nº 19/98), passou a recomendar a readequação da gratificação ao fenômeno da permanência “previsto pela Lei 10.442/88, inclusive com relação a não constituir base de cálculo de nenhum outro benefício”.
Ora, o artigo 29 da Lei Municipal nº 14.381/2007 expressamente estabelece, em seu §8º[2], em distinção ao que ocorre com a incorporação, que o valor atribuído à GLIEP não constitui base de incidência de cálculo para qualquer outra vantagem pecuniária.
Resta claro, portanto, a existência de diferença conceitual e de tratamento quanto à incorporação e à permanência.
Passemos, então, à análise do alcance da norma inserida no §9º do artigo 39 da Carta Magna pela Emenda Constitucional nº 103/2019.
Transcrevamos novamente o teor da norma:
É vedada a incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo.
Sabe-se que a lei não contém palavras inúteis e que a exegese literal deve observar algumas cautelas, como brilhantemente, há muito, destacado pelo mestre da hermenêutica Carlos Maximiliano[3]:
Cada palavra pode ter mais de um sentido; (…) em regra, só do complexo das palavras empregadas se deduz a verdadeira acepção de cada uma, bem como a ideia inserta no dispositivo.
(…)
Notam-se na linguagem duas tendências, opostas, exercidas simultaneamente sobre palavras diversas, ou sobre a mesma e em épocas diferentes: para generalizar e especializar o sentido respectivo, o qual vai mudando à proporção que se verifica o mencionado fenômeno de Linguística. Precisa, portanto, o hermeneuta conhecer o desenvolvimento evolutivo, a história de um vocábulo, a fim de apurar o que este foi chamado a exprimir.
(…)
Presume-se que a lei não contenha palavras supérfluas; devem todas ser entendidas como escritas adrede, para influir no sentido da frase respectiva.
No caso em tela a norma cita expressamente o termo “incorporação”.
A referendar, ainda, a menção ao termo “incorporação” em seu sentido técnico, a regra faz menção à integração de “vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo”.
Observa-se da leitura da norma que o intuito do legislador foi vedar, e parcialmente, o fenômeno da incorporação em sentido estrito e técnico, isto é, a integração de vantagens ao vencimento padrão do cargo, a fim de se constituir base para outras vantagens pecuniárias, não se confundindo com a permanência da percepção da vantagem em si, após preenchidos os requisitos legais.
Na legislação geral e na Doutrina é clara a diferença entre vencimento e remuneração, sendo certo que o primeiro termo é o que se mais aplica à contraprestação pelo exercício de um cargo, enquanto o segundo somente é utilizado para se referir ao conjunto de valores (vencimento + vantagens) recebidos por um servidor.
A Lei Federal nº 8.112, 11 de dezembro de 1990 estabelece distinção entre os dois conceitos:
Art. 40. Vencimento é a retribuição pecuniária pelo exercício de cargo público, com valor fixado em lei.
Parágrafo único. Nenhum servidor receberá, a título de vencimento, importância inferior ao salário-mínimo.
Art. 41. Remuneração é o vencimento do cargo efetivo, acrescido das vantagens pecuniárias permanentes estabelecidas em lei.
A Doutrina, igualmente, trata da diferenciação:
Os autores têm distinguido, nessa matéria, vencimento, vencimentos, remuneração e subsídio. Vencimento e vencimentos são expressões próprias do regime estatutário e sempre estão referidas a cargo. Vencimento tem acepção estrita e corresponde à retribuição pecuniária a que faz jus o servidor pelo efetivo exercício do cargo. É igual ao padrão ou valor de referência do cargo fixado em lei. Nesse sentido, a retribuição é sempre indicada por essa palavra (vencimento), grafada no singular. Vencimentos tem sentido lato e corresponde à retribuição pecuniária a que tem direito o servidor pelo efetivo exercício do cargo, acrescida pelas vantagens pecuniárias (adicionais e gratificações) que lhe são incidentes. Compreende o padrão e as vantagens pecuniárias: as do cargo ou as pessoais. Nesse sentido, a retribuição é sempre indicada pelo vocábulo em apreço, escrito no plural (vencimentos), muito embora essas regras não sejam absolutas. A Constituição Federal em nenhum momento utilizou a expressão “vencimento”, como aqui entendida. Às vezes que a usou, o fez para indicar o transcurso de um prazo, como ocorre no art. 46 do ADCT. Na segunda acepção aparece no texto da Lei Maior em vários dispositivos, a exemplo do art. 37, XII. A locução “remuneração” já não tem o seu antigo significado, ou seja, de retribuição composta por uma parte fixa, quase sempre igual a dois terços do padrão, e uma parte variável (quotas ou percentagens da sucumbência ou das multas arrecadadas) paga em razão da produtividade. Atualmente significa o somatório de todos os valores percebidos pelo servidor, quer sejam pecuniários, quer não. Assim, abrange o vencimento, as vantagens e as quotas de produtividade. (…) (GASPARINI, Diógenes. “Direito Administrativo”. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 244) – destaques nossos.
Remuneração é o montante percebido pelo servidor público a título de vencimentos e de vantagens pecuniárias. É, portanto, o somatório das várias parcelas pecuniárias a que faz jus, em decorrência de sua situação funcional.
(…)
Vencimento é a retribuição pecuniária que o servidor percebe pelo exercício de seu cargo, conforme a correta conceituação prevista no estatuto funcional federal (art. 40, Lei nº 8.112/1990). Emprega-se, ainda, no mesmo sentido vencimento-base ou vencimento-padrão. Essa retribuição se relaciona diretamente com o cargo ocupado pelo servidor: todo cargo tem seu vencimento previamente estipulado. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. “Manual de Direito Administrativo”. 25ª Edição, São Paulo: Atlas, 2012, p. 729) – destaques nossos.
A legislação ordinária emprega, com sentidos precisos, os vocábulos vencimento e remuneração, usados indiferentemente na Constituição. Na lei federal, vencimento é a retribuição pecuniária pelo efetivo exercício do cargo, correspondente ao padrão fixado em lei (art. 40 da Lei n.º 8.112/90) e remuneração é o vencimento mais as vantagens pecuniárias atribuídas em lei (art. 41). Provento é a retribuição pecuniária a que faz jus o aposentado. E pensão é o benefício pago aos dependentes do servidor falecido. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, “Direito Administrativo”, 14ª ed, Ed. Atlas, 2002, p. 492) – destaques nossos.
Como se observa, embora utilizando-se de expressões diversas quanto à retribuição pelo exercício de um cargo, a Doutrina é sólida em relacionar a remuneração à somatória do salário-base do cargo, acrescido das demais vantagens do cargo e pessoais a que o servidor faz jus.
Pode-se dizer, assim, que o vencimento refere-se ao cargo e a remuneração refere-se à pessoa do servidor, quanto ao cargo que ocupa e demais parcelas atinentes à sua vida funcional, e que os termos utilizados ao longo do texto constitucional não necessariamente guardam fidelidade técnica.
Daí porque se conclui que, a despeito do termo “remuneração” ter sido utilizado na norma inserida no §9º do artigo 39 da Constituição Federal, como a norma faz referência à vedação da integração de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à contraprestação de cargo efetivo, não há outra interpretação a fazer que não seja a de que está vedada apenas a incorporação dessas vantagens ao vencimento-padrão do cargo, isto é, tais vantagens não podem integrar a base de cálculo utilizada para quaisquer outras vantagens.
Partilho do entendimento, portanto, de que a norma constitucional não veda o instituto da permanência, estabelecido no ordenamento jurídico municipal.
Tal entendimento, inclusive, é o que mais se coaduna com a repartição de competências estabelecida pela própria Constituição Federal, dentro do sistema federativo por ela adotado.
Nesse sentido, destaca-se o quanto disposto no artigo 37, inciso X, da Lei Maior:
“a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”.
Aliás, a autonomia do Município, a quem incumbe melhor gerir administrativa e financeiramente seu quadro de pessoal, é tema caro ao E. Supremo Tribunal Federal, que assim já se manifestou sobre normas disciplinadoras de sistemas remuneratórios:
(…) cabe registrar que o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, em reiteradas oportunidades, tem prestigiado a autonomia dos municípios, de forma a assegurar o pleno exercício da tríplice capacidade de autoorganização, normatização própria, autogoverno e autoadministração, funções essas que lhes foram outorgadas pela própria Constituição Federal.
Pela pertinência, confira-se o seguinte trecho do voto do então Relator, Min. GILMAR MENDES, proferido na ADI 144, Tribunal Pleno, DJe de 3/4/2014:
“(…) a presente ação direta objetiva ver declarada a inconstitucionalidade do § 5º do art. 28 da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte, que estabelece data-limite para o pagamento dos vencimentos “dos servidores públicos estaduais e municipais, da administração direta, indireta, autárquica, fundacional, de empresa pública e de sociedade de economia mista”, corrigindo-se monetariamente os seus valores se pagos em atraso.
Sobre o tema, a jurisprudência desta Corte firmou entendimento no sentido de que a fixação, pelas Constituições dos Estados, de data para o pagamento dos vencimentos dos servidores estaduais e a previsão de correção monetária em caso de atraso não afrontam a Constituição Federal. Nesse sentido, cito os seguintes precedentes: RE 258.916, Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, DJ 12.5.2000; ADI 544/ SC, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ 30.4.2004; ADI 559/MT, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJ 5.5.2006.
No entanto, como bem apontado no acórdão que julgou a medida liminar, a Constituição do Rio Grande do Norte estende a obrigação aos servidores municipais e aos empregados celetistas de empresas públicas e sociedades de economia mista. Nesse ponto, a discussão transfere-se para a preservação de dois importantes valores constitucionais: a autonomia municipal e a competência da União para legislar em matéria de direito do trabalho. Especificamente quanto à imposição aos servidores municipais, caracteriza-se disposição de flagrante violação à autonomia administrativa e financeira municipal, disposta nos arts. 29; 30, I; e 34, VII, c, da Constituição Federal.”
Na mesma linha:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ART. 75, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DE GOIÁS – DUPLA VACÂNCIA DOS CARGOS DE PREFEITO E VICE-PREFEITO – COMPETÊNCIA LEGISLATIVA MUNICIPAL – DOMÍNIO NORMATIVO DA LEI ORGÂNICA – AFRONTA AOS ARTS. 1º E 29 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O poder constituinte dos Estados-membros está limitado pelos princípios da Constituição da República, que lhes assegura autonomia com condicionantes, entre as quais se tem o respeito à organização autônoma dos Municípios, também assegurada constitucionalmente. 2. O art. 30, inc. I, da Constituição da República outorga aos Municípios a atribuição de legislar sobre assuntos de interesse local. A vocação sucessória dos cargos de prefeito e vice-prefeito põem-se no âmbito da autonomia política local, em caso de dupla vacância. 3. Ao disciplinar matéria, cuja competência é exclusiva dos Municípios, o art. 75, § 2º, da Constituição de Goiás fere a autonomia desses entes, mitigando-lhes a capacidade de auto-organização e de autogoverno e limitando a sua autonomia política assegurada pela Constituição brasileira. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente.” (ADI 3.549, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, DJe de 31/10/2007)
(…)
(ARE 1222297, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 12/08/2019, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 16/08/2019 PUBLIC 19/08/2019)
Nesse contexto, é importante frisar que a Constituição Federal consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se nota na análise dos artigos 1º, 18, 29, 30 e 34, VII, c, todos da Constituição Federal, tendo sido ressaltado pelo professor PAULO BONAVIDES, que:
“não conhecemos uma única forma de união federativa contemporânea onde o princípio da autonomia municipal tenha alcançado grau de caracterização política e jurídica tão alto e expressivo quanto aquele que consta da definição constitucional do novo modelo implantado no País com a Carta de 1988” (Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 314).
E, “a essência da autonomia municipal contém primordialmente (i) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (ii) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo”. (ADI 1842, Rel. Min. LUIZ FUX, Rel.p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 6/3/2013, DJe de 16/9/2013).
(…)
Sobre o tema, deve-se ter presente que a “competência do Município para organizar o serviço público e seu pessoal é consectário da autonomia administrativa que dispõe (CF, art. 30, I). Atendidas nas normas constitucionais aplicáveis ao servidor público (CF, arts. 37-41), bem como os preceitos das leis de caráter nacional e de sua lei orgânica, pode o Município elaborar o regime jurídico de seus servidores, segundo as conveniências locais. (…)
(RE 1263619, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 22/04/2020, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-110 DIVULG 05/05/2020 PUBLIC 06/05/2020)
No mesmo sentido trecho do seguinte acórdão do E. Tribunal Bandeirante:
“Incorporação. Diferença de Chefia. Cargo de Fiscal de Obras e de Chefe de Divisão. A pretensão do autor deve ser analisada à luz da legislação municipal, que rege por completo a matéria ora discutida; não há que se cogitar em aplicação das disposições previstas aos servidores públicos estaduais, dentre as quais o art. 133 da Constituição Estadual, sob a pena de ofender o poder de auto-organização e autogoverno do município. A discussão no caso concreto se refere ao preenchimento dos requisitos necessários à incorporação.” (TJSP, Apelação nº 0006819-21.2014.8.26.0338, 10ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. TORRES DE CARVALHO, j. 24/07/2017)
Persiste, assim, em norma constitucional de igual envergadura, a autonomia municipal, respeitada a iniciativa de cada Poder, para fixar e regular a remuneração de seus servidores, o que se dá na diferenciação pelo ordenamento municipal entre os institutos da incorporação e da permanência.
No caso concreto, a legislação municipal, como já exposto acima, faz expressa distinção entre os institutos da incorporação e da permanência, razão pela qual, pelo entendimento que ora se expõe, remanesce a possibilidade jurídica de declaração de permanência de vantagens temporárias como a GLIEP, isto é, da continuidade de sua percepção no tempo, após preenchidos os requisitos legais, sem que se integre ao vencimento do cargo efetivo e, portanto, sem que possa integrar a base de cálculo de outras vantagens pecuniárias.
Assim, até que transite em julgado a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 9048208-81.2008.8.26.0000, ou que recomendação em sentido diverso provenha do IPREM, autarquia municipal destinatária das contribuições previdenciárias, como recomendado no Parecer ADM nº 052/2019, a GLIEP é vantagem passível de se tornar permanente e, assim, nos termos do artigo 3º, §1º, do Decreto Municipal nº 46.860, de 27 de dezembro de 2005, deve integrar a base de cálculo da contribuição previdenciária, razão pela qual se conclui que não há amparo jurídico para o deferimento do pleito do servidor requerente.
S.m.j., é o entendimento que se submete à apreciação superior.
São Paulo, 26 de maio de 2020.
Djenane Ferreira Cardoso Zanlochi
Procuradora Legislativa – RF 11.418
OAB/SP nº 218.877
[1] Art. 18. A partir de 11 de agosto de 2005, os servidores que não implementarem as condições estabelecidas na legislação específica para incorporação ou permanência, na atividade, de vantagens que constituem a base de cálculo da contribuição social de que trata a Lei nº 13.973, de 12 de maio de 2005, e que integram a base de contribuição na forma do Decreto nº 46.860, de 27 de dezembro de 2005, terão direito, por ocasião da aposentadoria ou pensão, a que as remunerações a elas correspondentes sejam consideradas mediante cálculo, segundo média aritmética simples, na conformidade da regra estabelecida no artigo 16.
[2] Art. 29, § 8º, Lei Municipal nº 14.381/2007: “A gratificação de natureza pessoal ora instituída não constituirá, sob nenhuma hipótese, base de cálculo de qualquer outra vantagem pecuniária”.
[3] In “Hemenêutica e Aplicação do Direito”, 2ª edição, Livraria do Globo: Porto Alegre, 1933, p. 124/125.