Processo nº 1067/2006
Parecer nº 80/08
Assunto: XXX – contrato – reorganização empresarial – efeito
Sr. Procurador Legislativo Supervisor,
Trata-se de examinar os esclarecimentos prestados pela XXX, signatária do Contrato nº 44/06, mantido com esta Edilidade, tendo por objeto a contratação de empresa prestadora de serviços televisivos por assinatura.
Durante a execução do contrato, a XXX subscreveu e integralizou o capital da empresa XXX , ingressando na sociedade mediante a conferência de seu acervo líquido de ativos e passivos.
Deste modo, solicitou celebração de Termo Aditivo ao Contrato mantido com esta Edilidade, apresentando os documentos relativos à regularidade previdenciária, trabalhista e referente aos tributos municipais da empresa a quem foram transferidos os direitos e obrigações da signatária do ajuste.
A matéria foi examinada, prima facie, no parecer nº 47/08, à luz do art. 78 da Lei nº 8.666/93, segundo o qual constituem motivo para a rescisão do contrato “a subcontratação total ou parcial de seu objeto, a associação do contratado a outrem, a cessão ou transferência total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação, não admitidas no edital ou no contrato”.
Na oportunidade, examinou-se a questão sob a óptica da cessão total do contrato a outrem. Juntou-se a decisão de nº 211/06, do Plenário do Tribunal de Contas da União também relativa à cessão contratual (fls. 211/228).
Todavia, quer-me parecer que a hipótese dos autos não é propriamente a de cessão total do contrato a terceiros, e sim de sucessão de direitos e obrigações decorrente de reorganização empresarial – como são as operações de fusão, cisão ou incorporação. Trata-se de institutos jurídicos distintos. E também distinta tem sido a orientação doutrinária e jurisprudencial a respeito, ainda que tais institutos estejam aludidos em conjunto no art. 78, inc. VI da Lei nº 8.666/93.
Passo a opinar a respeito, trazendo à colação a legislação aplicável à matéria, os posicionamentos doutrinários mais destacados e a orientação do Tribunal de Contas da União e da Procuradoria Geral do Município de São Paulo acerca do assunto. Finalmente, à luz da situação de fato trazido para análise, apresento as conclusões alcançadas.
1. Institutos aludidos no art. 78, inc. VI da Lei nº 8.666/93
O art. 78 da Lei nº 8.666/93 contempla entre as hipóteses de rescisão do contrato a “cessão, ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação, não admitidos no edital ou no contrato”.
Nota-se que o dispositivo alberga institutos jurídicos muito distintos entre si. A cessão ou transferência de um contrato é algo distinto da fusão, cisão ou incorporação de uma empresa.
O ponto em comum entre a cessão de posição contratual e os fenômenos de reorganização empresarial – fusão, incorporação ou cisão – é a alteração da identidade do sujeito. Mas, na cessão, o cessionário é um sujeito autônomo e inconfundível com o cedente. Já na reorganização empresarial o sucessor possui a mesma condição econômica do sucedido, alterando-se a apenas a exteriorização jurídico-formal.
A doutrina registra divergências de interpretação quanto ao alcance e sentido do art. 78, inc. VI, da Lei nº 8.666/93, conforme a seguir alinhado.
2. Doutrina
Comentando o inc. VI do art. 78 da Lei nº 8.666/93, Jessé Torres Pereira Júnior,- afirma que “dará causa à rescisão do contrato qualquer ato que implique substituição do contratado por outra pessoa, ainda que esta signifique desdobramento daquele, como ocorre na incorporação, na fusão ou na cisão, irrelevante que as sociedades resultantes assumam todos os direitos e obrigações da que foi incorporada, fundida ou cindida. A ratio está em que a empresa substituta, não tendo participado da licitação, não teve sua habilitação aferida, nem disputou preço com os demais concorrentes, sendo, portanto, uma estranha para a Administração”.
A questão remete, pois, ao respeito à identidade do licitante vencedor, que traduz a observância dos princípios jurídicos da supremacia do interesse público e da isonomia – finalidade da licitação.
Se a Administração selecionou determinada proposta como a mais vantajosa, firmar contrato com outrem representaria infringir o princípio do interesse público, pois a modificação do sujeito poderia se traduzir em alterações no conteúdo da prestação.
Por outro lado, se um outro sujeito fosse contratado sem a prévia licitação haveria lesão ao princípio da isonomia.
Marçal Justen Filho assinala, todavia, que a diversidade de situações contempladas no inc. VI do art. 78 da Lei nº 8.666/93 – subcontratação, associação com terceiros, cessão de posição contratual, e modificações estruturais da pessoa jurídica – merece exame mais específico.
Em sua visão, as operações de reorganização empresarial – fusão, incorporação ou cisão – que implicam sucessão da pessoa jurídica podem acarretar a rescisão do contrato apenas “se forem instrumento de frustração de regras disciplinadoras da licitação, o que deverá ser evidenciado caso a caso” Deste modo, o inc. VI do art. 78 da Lei nº 8.666/93 deveria ser interpretado de modo consentâneo com a exigência do inc. XI do mesmo dispositivo, que. assinala a possibilidade de rescisão do contrato quando haja alteração da estrutura da empresa “que prejudique a execução do contrato”.
Sua argumentação tem por base a consideração de que não é o “caráter pessoal” que justifica o dever de firmar o contrato com o licitante vencedor.
Tal dever decorre de uma avaliação objetiva por parte do poder público. O art. 64, § 2º da Lei nº 8.666/93 assinala que, havendo recusa do adjudicatário de formalizar o contrato, a Administração poderá convocar os demais licitantes, na ordem de classificação para “fazê-lo em igual prazo e nas mesmas condições propostas pelo primeiro classificado.”
Deste modo, a escolha de um certo particular para executar uma prestação específica não decorre de uma preferência subjetiva.
Assim, deve-se indagar se a alteração subjetiva – em cada caso – é ou não instrumento de lesão ao princípio da isonomia ou se prejudica ou não o interesse público, tendo em conta que cessão do contrato a terceiros não é o mesmo que sucessão na posição econômica do contratado em virtude de incorporação, fusão ou cisão.
Nessa linha, a existência de contratações administrativas não configuraria – por si só e em princípio – um obstáculo jurídico à reorganização econômica de uma pessoa jurídica. Somente haveria algum impedimento na medida em que tais operações ofendam aos princípios da supremacia do interesse público, da isonomia, ou sejam potencialmente aptas a inviabilizar a execução do contrato administrativo pendente.
Nessa esteira, Floriano P. Azevedo Neto afirma que a Administração poderá anuir com a transferência contratual em hipóteses de cisão, incorporação ou cisão – mesmo que não prevista no edital ou no contrato – se esta não for incompatível com o interesse público e com a continuidade do serviço correlato ao contrato; devendo levar em conta as condições particulares daquele que sucederá o contrato original, cuidando de respeitar o princípio da isonomia.
3. Orientação do Tribunal de Contas da União e da Procuradoria Geral do Município de São Paulo
O Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 1108-2003, orientou-se em sentido restritivo, entendendo que: “é possível a continuidade dos contratos celebrados com empresas que tenham sofrido fusão, incorporação ou cisão, desde que sejam cumpridos os seguintes requisitos cumulativamente:
9.1.1 tal possibilidade esteja prevista no edital e no contrato, nos termos do art. 78, inc. VI, da Lei nº 8.666/93;
9.1.2 sejam observados pela nova empresa os requisitos de habilitação estabelecidos no art. 27 da Lei nº 8.666/93, originalmente previstos na licitação; e
9.1.3 sejam mantidas as condições estabelecidas no contrato original”.
Em que pese tal orientação, em Acórdão posterior, de nº 113/06, o Tribunal de Contas da União admitiu a possibilidade de transferência de contrato para empresa sucessora sem que estivesse presente a condição referida no item 9.1 retro-citado. O mesmo se passou na decisão objeto do Acórdão nº 1517/2005. Restou demonstrado nos casos concretos que a sucessão não feriu o interesse público ou o princípio da isonomia.
Portanto, no âmbito do Tribunal de Contas da União há entendimentos em sentido diversos. O primeiro acórdão citado, de nº 1.108/2003, tende a uma orientação mais genérica e restritiva. Os dois outros acórdãos descem a uma análise mais apurada e, em face das circunstâncias dos casos “sub examine”, admitem a continuidade do contrato com a sucessora mesmo quando a hipótese não haja sido expressamente prevista no edital ou no contrato. Em qualquer caso, exige-se que a sucessora satisfaça as condições de habilitação e mantenham-se as condições pactuadas originalmente.
Em caso ainda mais recente – de nº 365/2007, que tomo a iniciativa de anexar – o Tribunal de Contas da União concluiu pela possibilidade de assunção, por empresa sucessora, de contrato referente à licitação vencida por empresa cindida. Louvando-se nos ensinamentos de Marçal Justen Filho, entendeu que a interpretação do art. 78 deve ser norteada pelo princípio da indisponibilidade do interesse público. Finalmente, aludindo às decisões anteriores do Tribunal que preconizavam interpretação mais conservadora, sustentou o Relator:
“…Julgo ainda que o Tribunal, para casos similares, não deve se encerrar em uma interpretação por demais restritiva do sentido da norma ou do edital, podendo invocar, como razão para solução da lide, o interesse público..”
O Plenário, unanimemente, acompanhou o Relator.
Em relação ao mesmo tema, a Procuradoria Geral do Município examinou a questão minuciosamente. Conforme ementa nº 10.624 da Assessoria Jurídico- Consultiva – que segue em anexo – , firmou o entendimento, adotado no âmbito do Poder Executivo Municipal, de que “a ausência de previsão expressa no edital e no contrato, da admissibilidade de incorporação da empresa contratada, não conduz, se configurada a hipótese, de imediato, à rescisão do contrato, devendo a Administração analisar as bases da administração societária da contratada, inclusive quanto à sua licitude (isto é, se a incorporação não visa a fins ilícitos, em especial fraude fiscal), opondo seu veto apenas caso entenda haver o comprometimento da execução do contrato ou vantagem indevida ao contratado, passando-se, por exemplo, a exigir menos do que foi originalmente previsto na licitação, ou , em outras palavras, devem ser mantidas após a incorporação, todas as condições da proposta vencedora do certame, donde defluiu a vantajosidade da contratação”.
4. A situação em exame: encaminhamento
Na situação dos autos, a empresa vencedora da licitação XXX – firmou com a Edilidade o Contrato nº 44/06. Posteriormente, sofreu uma reorganização interna, mediante subscrição integral do capital da XXX
Conforme esclarecimentos trazidos aos autos, a operação contou com a prévia anuência da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL (fls. 293), e houve a transferência da permissão outorgada à XXX à XXX (fls. 294/295).
Deste modo, o novo sujeito assumiu a mesma posição jurídica e econômica titularizada pelo anterior titular, e a reorganização vinculou-se à continuidade das relações jurídicas existentes.
A operação descrita pela XXX não aparenta em si qualquer cunho de anomalia ou antijuridicidade.
Mas a empresa detém contrato com a Edilidade, e, no mesmo – e no edital que o precedeu – não houve admissão expressa de que o contratado poderia realizar operações de cisão, incorporação ou fusão durante a execução do ajuste.
O contratado foi escolhido por haver preenchido requisitos objetivos de habilitação. Eventual modificação da estrutura empresarial do contratado tem de ser avaliada – me parece – segundo critérios igualmente objetivos.
Em princípio, parece-me descabido opor-se à alteração porque a Administração “prefere” a situação anterior. Em última instância, isso configuraria ofensa ao princípio da impessoalidade. E também, no caso concreto, prejudicial ao interesse público, uma vez que a permissão conferida anteriormente à XXX foi transferida à empresa XXX, conforme documentado nos autos.
Assim, à luz da legislação, da doutrina, da jurisprudência do Tribunal de Contas da União e da orientação oferecida pela Procuradoria Geral do Município para situações da espécie, sou dada a concluir que os esclarecimentos prestados pela empresa são aptos a fundamentar termo aditivo ao contrato, onde conste a empresa sucessora como signatária; uma vez que:
a) a incorporação da empresa XXX pela empresa XXX contou com a prévia anuência da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL;
b) a empresa sucessora comprovou atender as condições de regularidade previdenciária, fiscal e relativa a tributos municipais exigidas na fase da habilitação da licitação que originou o contrato nº 44/06 com a Edilidade – nesse sentido, faço juntar as certidões atualizadas;
c) estão mantidas todas as condições do contrato original, de modo que a proposta considerada mais vantajosa continua vinculando a empresa sucessora – não se vislumbrando ofensa ao interesse público, à isonomia, risco de comprometimento à execução do contrato; ou qualquer razão que justifique a reabertura de procedimento licitatório;
d) a possibilidade de assunção do contrato por empresa sucessora, ainda que não expressamente admitida no edital ou no contrato, desde que observadas as demais condições legais, vem amparada pela melhor doutrina e foi assumida na orientação mais recente em relação à matéria oferecida pelo Tribunal de Contas da União, sendo ainda expressamente recomendada pela Procuradoria Geral do Município de São Paulo.
Elaborei, deste modo, minuta de termo de aditamento, para fazer constar a mudança de titularidade subjetiva do contrato.
É o parecer, que submeto à criteriosa apreciação superior.
São Paulo., 31 de março de 2008
Maria Nazaré Lins Barbosa
Procurador Legislativo