Parecer n° 270/2015

PARECER 270/15
TID XXXXXXXXXXXXXXX
REF. Ofício SSG-GAB nº 9366/2015 e Processo TC nº 72.008.341.88-1
INTERESSADO SECRETÁRIO GERAL ADMINISTRATIVO
ASSUNTO PROCEDIMENTOS DE FISCALIZAÇÃO. TRIBUNAL DE CONTAS DO MUNICÍPIO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS, HOSPITALARES E ODONTOLÓGICOS PELA EDILIDADE. POSSIBILIDADE. EVENTUAIS IRREGULARIDADES. RELEVAÇÃO EM RAZÃO DO DECURSO DO TEMPO.
1- O extenso lapso temporal entre o ato ou contrato administrativo e a conclusão do procedimento de fiscalização deve levar a Corte de Contas à aceitação dos seus efeitos financeiros. Precedentes.
2- O direito à assistência médica, hospitalar e odontológica é direito público subjetivo dos servidores municipais. O Município de São Paulo pode se desincumbir deste dever por meio da assistência prestada pelo Hospital do Servidor Público ou por outro órgão da Administração direta ou indireta, já que o ordenamento jurídico nunca conferiu a esta autarquia hospitalar exclusividade em relação à prestação destes serviços. Por isto, a Mesa Diretora da Câmara estava autorizada a editar Ato para regulamentar a prestação daqueles serviços a seus servidores.
3- Sugestão de formulação de defesa nos termos desta peça opinativa e da minuta anexa.
Sr.ª Procuradora Legislativa Supervisora,

1. Trata-se de expediente consistente em ofício encaminhado ao Sr. Secretário Geral Administrativo desta Câmara Municipal pelo Exmo. Presidente em exercício do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, expedido no bojo do procedimento de fiscalização em epígrafe. Tal ofício tem como finalidade:
(i) cientificar a Edilidade da existência dos procedimentos TC 72.002.918/87-63, 72.008.341/88-01, 72.002.352/87-24 e 72.008.813/87-18, que respectivamente cuidam da prorrogação do contrato 03/86, celebrado com o laboratório de análises clínicas XXXXXXXXXXXXXXX , para prestação de serviços de exames laboratoriais à Câmara, do contrato 08/88, firmado com a XXXXXXXXXXXXXXX , do contrato 04/87, firmado com o laboratório XXXXXXXXXXXXXXX , para elaboração de próteses dentárias aos servidores da Edilidade e do contrato 26/87, firmado com a XXXXXXXXXXXXXXX , para a prestação de serviços especializados em exames cardiológicos;
(ii) informar que o prazo para o oferecimento de defesa é de 15 (quinze) dias; e
(iii) encaminhar cópias das manifestações de fls. 59-79 e 85-87 do TC 72.008.341.88-01.
2. Da manifestação do ilustre assessor jurídico oficiante no processo TC 72.002.918.87-63, destaco a conclusão de que a existência e funcionamento do Hospital do Servidor Público Municipal estão estritamente vinculados à obrigação assistencial atribuída ao Município pelo artigo 175 da Lei n. 8.989/70, razão pela qual as normas vigentes à época acometeriam as atividades neste campo exclusivamente a este órgão específico de assistência médico-hospitalar, dentária e farmacêutica, com todos os serviços complementares, abrangendo analises clínicas e radiológicas e seção de farmácia. Por isto, conclui, ainda que os serviços oferecidos pela mencionada autarquia fossem precários, o que tornaria válida e justificável a preocupação dos administradores municipais em atender às exigências assistenciais dos seus servidores, “a Egrégia Câmara de Vereadores não pode contratar, por sua livre decisão, ou deliberação da Mesa, serviços de terceiros na esfera da assistência à saúde de seus funcionários e dependentes ou de pessoas estranhas ao quadro funcional propriamente dito, salvo se devidamente autorizada por lei” (fl. 76 do processo acima mencionado).
3. O Ilmo. Procurador da Fazenda Municipal preliminarmente pediu a intimação da origem, para apresentar informações e esclarecer o posicionamento deste órgão legislativo, e requereu que fossem reveladas as falhas formais e aceitos os efeitos financeiros dos contratos, com fundamento no princípio da segurança jurídica.
4. Recebido o ofício nesta Câmara de Vereadores, foi o expediente encaminhado a esta Procuradoria Legislativa pelo Secretário Geral Administrativo para conhecimento e, após, distribuído ao seu Setor de Contratos e Licitações. Neste setor, foi elaborado o Parecer n.º 237/2015, da lavra da douta Procuradora Legislativa Conceição Faria da Silva, no qual sugeriu o desarquivamento dos processos administrativos correspondentes aos contratos 03/86, 04/87, 26/87 e 08/88, além da solicitação de prorrogação de prazo por 30 (trinta) dias para o oferecimento de elementos referentes aos processos fiscalizados, o que foi feito por meio do Ofício SGA nº 237/2015.
É o relatório do essencial. Passo a opinar.
5. Conforme apontado, a manifestação do assessor jurídico do Tribunal de Contas do Município que sugere a assunção dos contratos 03/86, 04/87, 26/87 e 08/88 pelo Hospital do Servidor Público Municipal ou edição de lei autorizadora para a contratação de serviços de laboratório se baseia na conclusão de que as regras legais vigentes à época não permitiriam a prestação destes serviços por outros órgãos que não a autarquia hospitalar. Em outras palavras, foi apontada apenas ofensa ao princípio da legalidade, mas não houve indicação da existência de qualquer dano ao erário.
6. Tal observação é relevante porque se houvesse o apontamento de lesão ao erário, a pretensão da Fazenda Pública municipal ao ressarcimento de seus cofres seria imprescritível, nos termo do artigo 37, § 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil. Contudo, ainda que houvesse dano ao erário, as cominações das penas administrativas e civis apenas onerariam o sucessor do causador do dano até os limites do valor da herança (artigo 8º da Lei Federal n. 8.429/92) se o ato atentatório contra o princípio administrativo da legalidade se desse após a vigência da referida lei nacional, já que não havia a previsão de sanções nas hipóteses de atos que atentem contra princípios da Administração Pública nas vigências da Lei Federal n. 3.502/58 e da Lei Federal n. 3.164/56. Não é outra a posição acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça:
“ADMINISTRATIVO. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO RETROATIVA A FATOS POSTERIORES À EDIÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. IMPOSSIBILIDADE.
1. A Lei de Improbidade Administrativa não pode ser aplicada retroativamente para alcançar fatos anteriores a sua vigência, ainda que ocorridos após a edição da Constituição Federal de 1988.
2. A observância da garantia constitucional da irretroatividade da lei mais gravosa, esteio da segurança jurídica e das garantias do cidadão, não impede a reparação do dano ao erário, tendo em vista que, de há muito, o princípio da responsabilidade subjetiva se acha incrustado em nosso sistema jurídico.
3. Consoante iterativa jurisprudência desta Corte, a condenação do Parquet ao pagamento de honorários advocatícios no âmbito de ação civil pública está condicionada à demonstração de inequívoca má-fé, o que não ocorreu no caso.
4. Recurso especial provido em parte, apenas para afastar a condenação do recorrente em honorários advocatícios.” (grifei e negritei)
(STJ, REsp 1129121/GO, Segunda Turma, relatora Ministra Eliana Calmon, relator para o acórdão Ministro Castro Meira, julgado em 03/05/2012 e publicado no DJe em 15/03/2013)
7. No que se referem às demais sanções, importa observar que as ações prescreveriam cinco anos após o término do exercício dos mandatos dos membros das Mesas Diretoras entre 1986 e 1988, ex vi do artigo 23, inciso I, da Lei Federal n. 8.429/92, se fosse admitida a aplicação retroativa deste diploma legal. Portanto, neste aspecto, não há qualquer interesse em não serem declaradas regulares as contratações objeto da fiscalização nos autos do processo em epígrafe.
8. Ademais, a respeito da aceitação dos efeitos financeiros de atos administrativos em razão de extenso lapso temporal entre a constatação de irregularidades e o julgamento do procedimento de fiscalização, já reconheceu o Tribunal de Contas do Município os efeitos financeiros de ato eivado de irregularidade e deixou de aplicar penalidades aos agentes públicos responsáveis, em decisão cujo acordão foi assim ementado:
“ANÁLISE. CONVITE. ORDEM DE SERVIÇO. SMC. Serviços de auxiliar de operação de elevadores. Ascensoristas. Prática de terceirização ilícita. Ajustes ILEGAIS. Votação por maioria. EFEITOS FINANCEIROS ACEITOS, em decorrência de extenso lapso temporal. Votação unânime.” (grifei e negritei)
(TCM, TC nº 72-001.898.03-04, Primeira Câmara, relator Conselheiro Roberto Braguim, julgado em 27/08/2014)
9. Com efeito, tal julgado não poderia ter deixado de reconhecer efeitos financeiros a uma ordem de serviço de 2003, tendo em vista o princípio da segurança jurídica, que tem um duplo significado: “de um lado, a perspectiva de certeza, que indica o conhecimento seguro das normas e atividades jurídicas, e, de outro, a perspectiva de estabilidade, mediante a qual se difunde a ideia de consolidação das ações administrativas” (in Manual de Direito administrativo, José dos Santos Carvalho Filho, 27ª ed., Editora Atlas S.A., 2014, p. 38). Por isto, em razão da perspectiva da estabilidade deste princípio, deve ser acolhido o requerimento da Procuradora da Fazenda Municipal de que sejam “relevadas as falhas formais e aceitos os efeitos financeiros do ajuste”.
10. Ainda que não houvesse sido ultrapassado este enorme lapso temporal entre a formalização dos contratos objeto de fiscalização e o término dos seus respectivos procedimentos, não deveria ser reconhecida qualquer irregularidade ou vício na contratação de prestação de serviços aos servidores desta Edilidade. Isto porque o assessor jurídico oficiante no feito equivocadamente extraiu do ordenamento jurídico então vigente a exclusividade do Hospital do Servidor Público na promoção de assistência à saúde.
11. De fato, a Lei n. 7.736/72 estabelecia que:
“Artigo 2.º – Compete ao Hospital do Servidor Público Municipal – H.S.P.M.:
a) prestar assistência médico-hospitalar, odontológica e farmacêutica aos servidores municipais e seus dependentes, na forma da legislação municipal;”
12. Por sua vez, a Lei n. 10.257/87, que revogou a lei acima mencionada, dispunha que:
“Art. 2º – Compete ao Hospital do Servidor Público Municipal – HSPM:
a) prestar assistência médica, hospitalar, domiciliar, odontológica e farmacêutica aos servidores municipais contribuintes e seus dependentes, na forma da legislação em vigor, vedado o atendimento de servidor regido pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT;”
13. Da simples leitura destes dispositivos se extrai que o Município adimplia seu dever legal de prestar assistência médica e hospitalar, prevista no artigo 175 da Lei n. 8.989/79, por meio dos serviços prestados pelo HSPM. Contudo, não há qualquer palavra no texto legal que indicasse a exclusividade da prestação de serviços médicos, hospitalares e odontológicos pela Autarquia, razão pela qual, por meio de singela interpretação literal, conclui-se que este seria apenas um meio pelo qual a Administração Pública municipal deveria oferecer estes serviços aos seus servidores. Abandonar esta formula hermenêutica explícita “constitui um perigo para a certeza do Direito, a segurança jurídica; por isso é só justificável em face de mal maior, comprovado: o de uma solução contrária ao espírito dos dispositivos, examinados em conjunto” (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, Carlos Maximiliano, 20ª ed., Editora Forense, 2011, p. 91).
14. Além disto, extrair outra norma da interpretação dos textos legais transcritos implicaria em restringir o direito subjetivo do servidor público à assistência médica, dentária e hospitalar. Ainda que na vigência da anterior Carta Política, as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas à luz da Constituição e de forma a não restringir normas constitucionais veiculadoras de direitos fundamentais e sociais, a exemplo do direito à saúde. Desta forma, são respeitados os princípios da interpretação constitucional da força normativa da Constituição e da máxima efetividade, consistentes, respectivamente, em um conselho “para que os aplicadores da Constituição, na solução dos problemas jurídicos-constitucionais, procurem dar preferência àqueles pontos de vista que, ajustando historicamente o sentido das suas normas, confiram-lhes maior eficácia” e um “apelo aos realizadores da Constituição para que em toda situação hermenêutica, sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar os seus preceitos, sabidamente abertos e predispostos a interpretações expansivas” (in Curso de Direito Constitucional, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, 3º ed., Editora Saraiva, 2008, p. 118).
15. Por esta razão, a previsão da existência de clínica médica na Câmara Municipal e de suas atribuições por meio do artigo 8º do Ato n. 58/79, entre as quais a promoção de “exames médicos periódicos nos Senhores vereadores e funcionários com o intuito de manter prontuários médicos atualizados” não apenas encontra fundamento de validade no artigo 175 do Estatuto dos Funcionários Públicos do Município de São Paulo, como também no artigo 165, inciso XV, da Emenda Constitucional n. 1/69 à Constituição Federal de 1967. Não há qualquer eiva de ilegalidade neste ato normativo infralegal, portanto.
16. Outrossim, é relevante esclarecer que a espécie legislativa adotada pelas Mesas Diretoras dos períodos das contratações estava de acordo com o artigo 25, inciso III, do Decreto-lei Complementar Estadual n. 9/69, que dispunha sobre a organização dos Municípios. Além desta regra, que estabelecia competir privativamente à Câmara organizar seus serviços administrativos, o Ato n. 58/79 foi editado para implementar a reforma gradativa de que tratava a Lei n. 8.184, de 20 de dezembro de 1974, em especial, seu artigo 15, in verbis:
“Desde que não determine alteração do Quadro, a implementação da reforma poderá ser feita gradativamente, à medida que os estudos setoriais forem sendo concluídos e expedidos os competentes Atos da Mesa.” (negritei e grifei)
17. Ante o exposto, sugiro a formulação da defesa deste Poder Legislativo pelo Secretário Geral Administrativo baseada na aceitação dos efeitos financeiros dos contratos administrativos, seja em razão do grande intervalo de tempo entre o exaurimento das avenças e a fiscalização pela Corte de Contas do Município, seja em razão da não exclusividade da prestação de serviços médicos, hospitalares e odontológicas pelo HSPM, nos termos da minuta anexa a este parecer.
É o parecer que submeto à elevada apreciação de Vossa Senhoria.

São Paulo, 11 de agosto de 2015

RAFAEL MEIRA HAMATSU RIBEIRO
Procurador Legislativo – OAB/SP 332.008