Parecer n° 235/2014

Parecer nº 235/2014
Processo nº 818/2014

Sr. Procurador Legislativo Supervisor,

Diante da solicitação do Senhor Secretário Geral Administrativo, às fls. 325, passo a relatar os fatos que considero relevantes registrados nos autos.

Atualmente encontra-se em vigor o contrato nº 22/2013, firmado com a xxxxxx para a prestação dos serviços de produção, geração e veiculação do conteúdo televisivo (TV Câmara São Paulo), radiofônico (Rádio Web CMSP) e digital (Portal CMSP) desta Edilidade. Lembre-se que o referido contrato encontra-se excepcionalmente prorrogado por até três meses.

Em 12/08/2014, a referida contratada sugeriu à Câmara a possibilidade de incorporar ao escopo do mencionado contrato o Media Asset Management (MAM), que, em resumo, é uma solução integrada de hardware e software que otimizaria a gestão dos serviços (fls. 06/07).

Nesse passo, o gestor do contrato assinalou quais recursos humanos e equipamentos necessários à nova configuração do objeto, incluindo entre os equipamentos o citado sistema MAM (01/05).

Diante da nova configuração do objeto do contrato, os autos foram encaminhados para consulta ao mercado visando obter os novos preços em face das modificações no objeto.

Encerrada a pesquisa de preços (fls. 198), constatou-se no mercado valores inferiores ao proposto pela atual contratada. O gestor, analisando a documentação trazida aos autos, não vislumbrou óbices à contratação da citada xxxxxxx, que ofereceu o menor preço (fls. 292/293).

Ante essa decisão, a xxxxxxx encaminhou à Edilidade os documentos de fls. 304/306 e 308/312, alegando, em resumo que estariam “abertos à discussão”, que haveria “disponibilidade de ajustar as condições propostas, na hipótese de haver proposta com valor inferior”, que “envidou esforços no desenvolvimento de estudos internos no sentido de otimização de seus recursos e do redimensionamento de sua proposta”, e propôs a redução no valor financeiro anteriormente oferecido, assim como ofertou a transferência dos equipamentos relacionados ao sistema MAM ao patrimônio da Edilidade” sem custo adicional após 24 (vinte e quatro) meses de vigência do futuro contrato.

Ante essa nova proposta, os autos foram instruídos com a oitiva do Diretor Executivo da TV Câmara São Paulo e do Coordenador do Centro de Comunicação Institucional.

O primeiro revelou certa insatisfação com o uso dos “equipamentos aqui instalados”, arguiu que os responsáveis da xxxxxx não conseguiram resolver os problemas constatados e solicitou que fossem adotadas as medidas necessárias à aplicação de penalidades à xxxxxxx face ao descumprimento das cláusulas 2.1.2.3, 2.1.19 e 2.1.21 (fls. 316).

O segundo também manifestou seu descontentamento com a execução dos serviços ora em apreço e informou que a doação dos equipamentos do sistema MAM ofertada pela xxxxxx  ao invés de ser uma vantagem, na realidade, seria inconveniente aos interesses administrativos, na medida em que, com a incorporação desses bens ao patrimônio da Edilidade, caberia a ela arcar com o ônus de atualizá-los, em caso de obsolescência, e com os encargos de seguro. Ademais, de acordo com a proposta da xxxxxxx , essa doação estaria condicionada à celebração de um contrato pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses (fls. 320/323).

Diante deste cenário, passo a traçar o panorama jurídico que rege a matéria.

A Constituição Federal, em seu artigo 37, XXI, estabelece que: “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processos de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”.

A Lei Federal nº 8.666/93, no artigo 3º, prescreve que a “licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos”.

O caso em apreço configura hipótese de contratação direta, com fundamento no artigo 24, XIII da Lei Federal de Licitações. Em que pese o referido diploma legal não ter estabelecido um procedimento próprio para a contratação direta, com etapas e prazos definidos, a Administração deve adotar um procedimento formal regido pelos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade e probidade administrativa tendente a selecionar a proposta que melhor atenda ao interesse público.

Sobre essa matéria, Marçal Justen Filho, em sua obra Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Revista dos Tribunais, 2014, p. 391 e 443, adverte:

“A ausência de licitação não equivale a contratação informal, realizada com quem a Administração bem entender, sem cautelas nem documentação. Ao contrário, a contratação direta exige um procedimento administrativo prévio, em que a observância de etapas e formalidades é imprescindível”… “Definido o cabimento da contratação direta, a Administração deverá pesquisar a melhor solução, tendo em vista os princípios da isonomia e da supremacia e indisponibilidade dos valores atribuídos à tutela estatal. Logo, deverá buscar a melhor solução, respeitando (na medida do possível) o mais amplo acesso dos interessados à disputa pela contratação.”… “A contratação não poderá ofender o princípio da isonomia. Existindo diversas instituições em situação semelhante, caberá um procedimento seletivo simplificado para selecionar aquela que apresente a melhor proposta – ainda que essa proposta deva ser avaliada segundo critérios diversos do ‘menor preço’”.

Dispõe o artigo 54 da Lei de Licitações que aos contratos administrativos aplicam-se supletivamente os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.

Desta feita, aplicam-se aos contratos administrativos os princípios estatuídos no Código Civil, nos artigos 113 e 422, abaixo transcritos:

“Art. 113 Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.

“Art. 422 Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

É certo concluir, então, que a boa-fé deve igualmente permear os contratos administrativos.

A boa-fé impõe aos contratantes os deveres de probidade, transparência, sinceridade, honestidade, lealdade e cooperação a fim de que com o negócio jurídico firmado as partes alcancem os objetivos almejados.

José Augusto Delgado (O Contrato de seguro e o princípio da boa-fé, Questões Controvertidas, Método, 2004, p. 216) ensina que:

“A boa-fé objetiva é concedida como uma regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração de que todos os membros da sociedade são juridicamente tutelados, antes mesmo de serem partes nos contratos”.

Assim, o ordenamento jurídico protege a confiança que os contratantes depositaram no negócio jurídico, a boa-fé é um dever inato a todo contratante, intrínseco a qualquer contrato, inclusive o contrato administrativo.

Ademais, ainda que o artigo 422 do Código Civil tenha se referido às fases contratual e pós contratual, os Tribunais já sedimentaram o entendimento que a fase pré-contratual também deve estar revestida de boa-fé, sendo objeto do Enunciado do Conselho da Justiça Federal (Código Civil Anotado e legislação extravagante, SP: RT 2006, P.339):

“12. Boa-fé objetiva. Responsabilidade pré e pós contratual. As partes devem guardar a boa-fé, tanto na fase pré-contratual, nas tratativas preliminares, como durante a execução do contrato e, ainda, depois de executado o contrato (pós-eficácia das obrigações). Isso decorre da cláusula geral da boa-fé objetiva adotada expressamente pelo CC 422 (…) Portanto, estão compreendidas tratativas preliminares, antecedentes ao contrato, como também as obrigações derivadas do contrato, ainda que já executado. Com isso os entabulantes – ainda não contratantes – podem responder por fatos que tenham ocorrido antes da celebração e da formação do contrato (responsabilidade pré-contratual) e os ex-contratantes – o contrato já se findou pela sua execução – também respondem por fatos que decorram do contrato findo (pós-eficácia das obrigações contratuais)”.

Por fim, ao permear os contratos, a boa-fé objetiva impede o abuso de direito por parte dos contratantes, pois o artigo 187 do Código Civil considerou ilícito o exercício do direito que exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé.

Sob a luz das normas e princípios acima, passo a analisar o caso concreto.

A Câmara buscou consultar o maior número de potenciais interessados na execução dos serviços relacionados com a contratação em apreço, verificou dentre esses quais preenchiam os requisitos quanto à habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-financeira e regularidade fiscal, analisou as propostas apresentadas e selecionou a da xxxxxx que apresentou a proposta mais vantajosa (fls. 198).

Encerrado o procedimento de seleção, a xxxxxxxx pretende reabrir as negociações, manifestando seu interesse em negociar seu preço a fim de cobrir o valor inferior obtido no mercado; alega que através da otimização de seus recursos redimensionou sua proposta, reduzindo seu preço.

A meu ver, acolher a pretensão da xxxxxxx afrontaria os princípios e normas anteriormente expostos.

Em primeiro lugar, por que a xxxxxxx envidou esforços, otimizou seus custos e reduziu seu preço somente após a ciência dos preços dos demais concorrentes? A adoção desse caminho permite inferir que houve uma quebra na relação de confiança existente entre as partes, que abala a seriedade das propostas apresentadas. A anterior estaria com valores superiores ou a atual seria inexequível? Ao que parece, as propostas apresentadas não estão revestidas da boa-fé que deve permear os negócios jurídicos, notadamente os contratos administrativos que têm como objetivo o alcance do interesse público.

Em segundo lugar, em homenagem ao princípio da isonomia, a aceitação da nova proposta da xxxxx implicaria no dever da Administração de conceder aos demais interessados que participaram da pesquisa a possibilidade de apresentarem novas propostas. Nesse caso, a contratação direta seria transfigurada em um arremedo de pregão, porque a cada nova proposta com valor inferior, os demais interessados deveriam ter a oportunidade de apresentarem novas propostas e assim sucessivamente, de tal modo que o processo de seleção não seria concluído. Ora, a Lei de Licitações confere à Administração a possibilidade de escolher qual a forma que pretende adotar para selecionar seus contratados e no caso, a Edilidade escolheu a contratação direta. Para tanto, foi observado um procedimento formal de seleção e os interessados tiveram o momento oportuno para apresentarem suas propostas.

Em terceiro lugar, de acordo com o gestor do contrato, a doação sem ônus dos equipamentos do sistema MAM não seria conveniente à Edilidade pelos motivos relatados às fls. 320/323. Além do mais, essa suposta vantagem oferecida pela xxxxxx não poderia ser considerada no momento da seleção das propostas por configurar flagrante afronta aos artigos 3º, 44 e § 2º da Lei nº 8.666/93, que possuem o seguinte teor:

“Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos”.

“Art. 44 No julgamento das propostas, a Comissão levará em consideração os critérios objetivos definidos no edital ou convite, os quais não devem contrariar as normas e princípios estabelecidos por esta Lei.

§ 2º Não se considerará qualquer oferta de vantagem não prevista no edital ou no convite, inclusive financiamentos subsidiados ou a fundo perdido, nem preço ou vantagem baseada nas ofertas dos demais licitantes”.

Muito embora nesse caso não tenha havido um instrumento convocatório propriamente dito, o julgamento das propostas levou em conta o termo de referência encaminhado aos interessados.

Por último, consoante a manifestação dos gestores do contrato ora em vigor, ultimamente a xxxxxxx não tem executado o objeto a contento, o que revela ser mais conveniente à Administração firmar contrato com outra entidade que trará novas experiências técnicas e novos profissionais o que resultará na execução de serviços mais qualificados, renovados e atualizados, conforme assinalado às fls. 321.

Ante todo o exposto, entendo que a nova proposta da xxxxxxx de fls… deve ser desconsiderada e que a decisão da E. Mesa de fls. não merece qualquer reparo.

Assim, elaborei a minuta do contrato que será firmado com a xxxxxx, com base no arquivo eletrônico enviado pelo CCI. Acompanham o presente a documentação referente à representação jurídica e regularidade fiscal da citada entidade.

Observo apenas que em respeito ao disposto no artigo 24 XIII da Lei nº 8.666/93, os autos deverão ser oportunamente instruídos com as informações relativas à inquestionável reputação ético-profissional da xxxxx.

São as minhas considerações que submeto à apreciação superior.

São Paulo, 09 de setembro de 2014.

Maria Helena Pessoa Pimentel
Procuradora Legislativa
OAB/SP nº 106.650