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Parecer n.º 198/2012
Ref.: Pedido de acesso à informação. Pagamentos feitos a funcionários individualizados por nome. Informação pessoal. Para harmonização do direito à intimidade e vida privada com o direito de acesso à informação as informações de pagamento devem ser prestadas de forma desvinculada do nome, identificando-se apenas o cargo do servidor. Inteligência da Lei nº 12.527/11 à luz da Constituição Federal de 1988. Necessidade de avaliação da razoabilidade do pedido.
Sr. Procurador Legislativo Supervisor,
Vossa Senhoria solicita análise e manifestação acerca de pedido de acesso à informação realizado pelo jornalista XXX, no dia 27 de junho de 2012, especialmente tendo em conta manifestação da Sra. Secretária Geral Administrativa Adjunta e da servidora Glória Martins da Equipe de Folhas de Pagamento.
Segundo consta do expediente, com fundamento na Lei Federal nº 12.527/11 – Lei de Acesso à Informação, o Requerente solicitou à Ouvidoria da Câmara Municipal de São Paulo: “Lista com todos os pagamentos feitos aos funcionários da Câmara Municipal de São Paulo desde junho de 2002 a junho de 2012, individualizados por nome, cargo e departamento onde trabalha” (grifei e negritei).
A Equipe de Folhas de Pagamento foi consultada a respeito da viabilidade de fornecimento das informações da forma como solicitadas pelo Requerente. Em resposta, consignou que as Folhas de Pagamento da Câmara Municipal estão digitalizadas até 2011, todavia, ressaltou que o formato disponível contém além das informações solicitadas – nome, cargo e remuneração – os dados bancários de cada servidor, bem como os descontos pessoais, tais como pensão alimentícia, consignados e descontos obrigatórios de Previdência Social e Imposto de Renda.
Acrescentou que a adaptação das informações ao formato solicitado, ocultando as informações sigilosas, seria um trabalho sem previsão de entrega, pois seria necessário verificar junto à WIZ, empresa que desenvolveu o software de gestão das folhas de pagamento, a viabilidade de preparar um tipo de relatório adequado, o tempo necessário para testes e o custo que representaria.
Na sequência, a Secretária Geral Administrativa Adjunta, Dra. Maria Nazaré Lins Barbosa, manifestou-se analisando a questão não tanto pela forma de atendimento do pedido, mas sim sobre a legalidade na apresentação das informações na forma como solicitadas, razão pela qual sugere que a Procuradoria analise o pedido.
Em suma, a preocupação da Sra. Secretária é que os dados solicitados enquadrem-se na definição de “informações pessoais” introduzida pelo artigo 4º, IV, da Lei nº 12.527/11 , de modo que se faria necessário observar as restrições de acesso impostas pelas normas constantes da Seção V – Informações Pessoais, do Capítulo IV da Lei nº 12.527/11, bem como a norma constante do artigo 34 do Capítulo seguinte que assevera “Os órgãos e entidades públicas respondem diretamente pelos danos causados em decorrência da divulgação não autorizada ou utilização indevida de informações sigilosas ou informações pessoais, cabendo a apuração de responsabilidade funcional nos casos de dolo ou culpa, assegurado o respectivo direito de regresso”.
Assim, do exposto, necessário sejam enfrentadas as seguintes questões:
1. Há respaldo legal para autorizar sejam os dados da Folha de Pagamento acessados pelo Requerente da forma como se encontram organizados hoje? e
2. Em caso negativo, como devem ser organizadas as informações a serem prestadas ao Requerente? Há respaldo legal para divulgação dos pagamentos feitos aos funcionários da Câmara Municipal de São Paulo individualizados por nome?
Passo a me manifestar.
De início, mister consignar que a Lei de Acesso à Informação não traz qualquer dispositivo que obrigue a Administração Pública a divulgar os valores pagos a seus servidores juntamente com a identificação pessoal do beneficiado.
Ao contrário, como bem colocado pela Sra. Secretária Geral Adjunta, a Lei de Acesso à Informação definiu como informação pessoal “aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável” e destinou uma Seção inteira (V) à regulamentação da forma de tratamento desse tipo de informação dentro do Capítulo IV da Lei, denominado “Das Restrições de Acesso à Informação”
Da regulamentação concernente à matéria interessa destacar que o artigo 31 determina que o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais, de modo que terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem e, ainda, apenas poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que se referirem.
Não bastasse, com o intuito de assegurar a observância das normas acima sintetizadas, o artigo 34, caput, determina “Os órgãos e entidades públicas respondem diretamente pelos danos causados em decorrência da divulgação não autorizada ou utilização indevida de informações sigilosas ou informações pessoais, cabendo a apuração de responsabilidade funcional nos casos de dolo ou culpa, assegurado o respectivo direito de regresso”.
O artigo 22, por sua vez, assegura que o disposto na Lei nº 12.527/11 não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça.
Dito isso, temos que, no caso em tela, o Requerente pretende ter acesso aos pagamentos feitos aos funcionários da Câmara Municipal de São Paulo de junho de 2002 a junho de 2012, de forma pessoalizada.
A Edilidade paulistana reúne essas informações, porém conforme informação da Equipe de Folhas de Pagamento, o formato imediatamente disponível contém além das informações solicitadas – nome, cargo e remuneração – os dados bancários de cada servidor, bem como os descontos pessoais, tais como pensão alimentícia, consignados e descontos obrigatórios de Previdência Social e Imposto de Renda.
Ora, caso seja autorizado a consulta a esse banco de dados, de se notar que, além do valor da remuneração e do cargo ocupado pela pessoa, necessariamente o Requerente terá acesso a outras informações de caráter indubitavelmente pessoal, como os dados bancários do servidor e os seus descontos pessoais.
Diante disso, a conclusão que alcanço é que o acesso à informação na forma como ela se encontra organizada hoje atenta contra o disposto no artigo 22 e 31 da Lei nº 12.527/11, podendo gerar inclusive responsabilização pessoal do servidor que autorizar referido acesso na forma do disposto no artigo 34 acima transcrito.
Assim, opino contrariamente ao acesso imediato aos dados na forma como hoje organizados.
No que tange a possibilidade de que a Câmara Municipal reorganize seus dados para ocultar as informações que por lei não podem ser divulgadas, deixo para analisar a parte operacional no final do parecer e, desde já, informo que é meu entendimento que fornecer a “Lista com todos os pagamentos feitos aos funcionários da Câmara Municipal de São Paulo desde junho de 2002 a junho de 2012, individualizados por nome, cargo e departamento onde trabalha” atenta contra a inviolabilidade da vida privada e da intimidade dos servidores públicos da Edilidade paulistana.
Todavia, frise-se, isso não quer dizer que o pedido do Requerente deva ser negado, mas apenas que a Administração Pública deve agir com cautela a fim de atender ao direito fundamental à informação previsto no artigo 5º, XXXIII, da Constituição Federal, ao mesmo tempo em que respeite os direitos, também fundamentais, de inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem dos seus servidores (artigo 5º, X e artigo 37, § 3º, II, da Constituição Federal).
Até porque nenhum direito fundamental prevalece de forma absoluta, fazendo-se mister, em caso de colisão, a aplicação do princípio hermenêutico constitucional da concordância prática ou harmonização, evitando que um deles seja anulado em detrimento do outro. A respeito, esclarecedora a síntese do Prof. Antonio Henrique Lindemberg Baltazar, in verbis:
“Concebido por Konrad Hesse, impõe-se que na interpretação da Constituição “os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto.” (COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris Editor, 1997, pág. 91)
O princípio da concordância prática ou da harmonização é comumente utilizado para resolver problemas referentes à colisão de direitos fundamentais. Segundo INGO WOLFGANG SARLET: “Em rigor, cuida-se de processo de ponderação no qual não se trata da atribuição de uma prevalência absoluta de um valor sobre outro, mas, sim, na tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas, ainda que no caso concreto se torne necessária a atenuação de uma delas” (SARLET, Ingo Wolfgang. Valor de Alçada e Limitação do Acesso ao Duplo Grau de Jurisdição. Revista da Ajuris 66, 1996)
Ainda, entende Inocêncio Mártires Coelho que o princípio da harmonização ou da concordância prática consiste numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum. Este método hermenêutico também é conhecido como princípio da concordância prática, o que significa dizer que somente no momento da aplicação do texto, e no contexto dessa aplicação, é que se podem coordenar, ponderar e, afinal, conciliar os bens ou valores constitucionais em “conflito”, dando a cada um o que for seu.”(Princípios de Interpretação Constitucional, http://www.editoraferreira.com.br/publique/media/lindemberg)
Nesse contexto há que se harmonizar a seguinte situação: de um lado o valor dos vencimentos dos cargos, empregos e funções públicas não é informação pessoal, devendo ser divulgado para atender ao espírito da lei de tornar possível o controle social das ações governamentais e, de outro, que a informação constante do contracheque de cada servidor é pessoal, sendo desarrazoado o acesso generalizado aos dados ali constantes, vinculados ao seu nome, o que inclusive caracteriza afronta à própria Lei de acesso à informação, conforme já demonstrado.
Por demonstrar a tensão existente entre os dois direitos em pauta, transcrevo o seguinte trecho de decisão liminar proferida pela MM. Juíza da 4ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de Porto Alegre /RS, nos autos da ação ordinária nº 11201527075 proposta pelo Sindicato dos Municipiários de Porto Alegre em face do Município de Porto Alegre:
“Necessário fazer os seguintes questionamentos: O empregado da iniciativa privada sentiria violada a sua intimidade caso o seu empregador divulgasse na internet, com acesso irrestrito ao público geral, os seus dados particulares acrescidos de sua remuneração bruta e líquida? Sentiria invadida a sua vida privada pelo fato de quem quer que seja, incluindo funcionários, vizinhos, conhecidos e desconhecidos, saber qual o seu labor, nome completo, dados de CPF e ainda remuneração bruta e líquida, sem mais ter a liberdade de informá-los a quem desejar? Creio que a resposta seja sim a ambos os questionamentos. Como se vê, não há dúvidas da interferência da conduta impugnada na esfera pessoal do indivíduo, não podendo o Estado afastar um direito constitucionalmente previsto unicamente porque alguém detém cargo, função ou emprego público – não é por isso que não possui mais direito à preservação da sua intimidade. Esse direito é de todos e não pode ser afastado em nenhuma hipótese, sob pena de violação do princípio da igualdade e, ainda, da Força Normativa da Constituição. Não se está, aqui, entendendo por impedir o acesso à informação, pois este não pode ser ignorado e, vale repetir, o direito à inviolabilidade também não pode a ele se sobrepor. (…).O que se pretende é a harmonização de ambos direitos subjetivos, de modo que as informações de vencimentos e cargos sejam acessíveis a todos, mas sem a identificação dos agentes com a exposição desarrazoada dos seus dados pessoais, passíveis de utilização indevida por terceiros ou eventual prática de ilícitos penais – não se pode desconsiderar o grau de insegurança que transborda hoje entre os brasileiros, – o que configura flagrante excesso. (…). O que se verifica é que se tem dado maior importância à especulação de salários do que ao próprio objetivo/espírito da lei de acesso, que é muito mais amplo do que isso: prevenir a corrupção e tornar possível o controle social das ações governamentais.”
Entendo, assim, que para conciliar os direitos fundamentais em conflito o ideal seria que as informações de vencimentos e cargos fossem fornecidas ao Requerente, mas sem a vinculação ao nome dos servidores e demais informações pessoais, evitando, desta feita, a exposição desarrazoada de seus dados. E, caso o Requerente se interesse pelo nome dos servidores que estavam na ativa no período por ele apontado, deverá lhe ser fornecido também, porém em lista separada e que não contenha qualquer remissão a sua remuneração.
Acredito que essa posição apesar de mais conservadora se justifique ante a possibilidade de incidência do citado artigo 34 da Lei nº 12.527/11 e, em especial, tendo em conta que o cenário jurídico atual ainda se encontra instável no que tange a matéria, tanto é que diariamente se tem notícia de decisões liminares proibindo a divulgação da remuneração de servidores dessa forma e, não obstante o próprio Supremo Tribunal Federal tenha adotado essa prática administrativa e já conte com algumas decisões monocráticas no mesmo sentido, é fato que ainda não houve manifestação do plenário daquela Corte a respeito.
Necessário consignar, no entanto, que a orientação acima exposta destoa da prática que tem sido adotada pela E. Mesa da Câmara Municipal de São Paulo, que já há alguns meses tem divulgado em seu site as remunerações pagas vinculadas ao nome de seus servidores.
Isto posto, passe-se a análise da parte operacional da reunião das informações solicitadas.
A esse propósito a Equipe de Folhas de Pagamento manifestou-se no sentido de que a adaptação das informações existentes a um formato diferente “seria um trabalho sem previsão de entrega” e poderia representar um custo ainda a ser apurado.
Assim, sugiro, primeiro, contate-se o Requerente para que seja informado das dificuldades operacionais encontradas pela Câmara Municipal de São Paulo e, portanto, de que para reunião das informações por ele solicitadas deverão ser empreendidas providências administrativas tendentes a avaliar a forma e a possibilidade de reorganizar os dados hoje existentes de maneira a ocultar informação sigilosa que atualmente lhe é indissociável.
E, na sequência, sugiro que a Equipe de Folha de Pagamentos proceda à apuração dos custos reais, bem como do prazo provável para o levantamento das informações solicitadas, a fim de que então seja possível a realização de um juízo de razoabilidade por parte da E. Mesa da Edilidade paulistana no que concerne ao atendimento do requerimento formulado.
É o meu entendimento que submeto à apreciação de Vossa Senhoria.
São Paulo, 12 de julho de 2012.
CAROLINA CANNIATTI PONCHIO
Procuradora Legislativa – RF nº 11.153
OAB/SP nº 247.170