Parecer n° 189/2003

AT.2 – Parecer nº 189/03
Referências: Ofício SSDG nº 0991/2003
Assunto: Licitação – comprovação de regularidade fiscal – exigência em decreto do Poder Executivo – não vinculação da Câmara – independência entre os Poderes

Sr. Assessor Chefe,

O Egrégio Tribunal de Contas do Município de São Paulo objetivando apurar a veracidade de matéria publicada no Diário de São Paulo, de 2 de abril de 2003, realizou auditoria no procedimento licitatório promovido por esta Câmara Municipal visando à contratação de empresa para operar a TV São Paulo, emissora legislativa, do qual resultou a contratação da empresa NDEC.
O Exmo. Sr. Secretário da Fiscalização e Controle, *****i, resumindo as informações da Inspeção expõe que “os órgãos técnicos informaram que no exame da documentação da empresa NDEC, não constava a prova de regularidade fiscal no Município de São Paulo, considerando-se que se trata de empresa de serviços, com filial nesta capital; contaminando, destarte, “a regularidade do procedimento licitatório, uma vez que a LM 13.278/02, art. 23 e 24 c/c art. 36, inc. V e art. 37 do DM 41.772/02, estabelece expressamente a prova da regularidade fiscal com o Município de São Paulo, ainda que as empresas estejam sediadas em outras localidades”.
Esta é a única irregularidade, sob o aspecto jurídico/formal, na análise do Edital “sub examine”.
Passamos, pois a examinar a questão, enfrentando brevemente os seguintes tópicos: 1- a disciplina constitucional da matéria; 2- a submissão do Município às normas gerais estabelecidas pela lei federal de que trata o art. 21, inc. XVII da Constituição Federal; 3- a disciplina da Lei Federal º 8.666/93 em relação às exigências para habilitação; 4- a disciplina Lei Federal º 8.666/93 em relação à regularidade fiscal; 5 – O tratamento dado a matéria nos arts. 23 e 24 da Lei nº 13.278/02; 6- O tratamento dado à exigência de regularidade no âmbito do Poder Executivo municipal; 7- Da inexistência de vício insanável no edital e conclusões.

1- A disciplina constitucional de licitações e contratos
Em consonância com o princípio federativo, a Constituição estabelece no art. 21, inc. XVII, a competência da União para editar normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades para as administrações diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados e Municípios.
E, nos termos do art. 37, inc. XXI da Constituição Federal, temos:
“Art. 37…

XXI- ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
..”
2- Submissão do Município às normas gerais estabelecidas pela lei federal de que trata o art. 21, inc. XVII
Apenas as normas gerais são de obrigatória observância para as demais esferas de governo. A Constituição ressalva a competência dos demais entes federais para disciplinar a matéria. Logo, os Estados e municípios também dispõem de competência para disciplinar o tema. Com efeito, o princípio federativo reclama a faculdade de organização e administração de cada ente federal.
Cabe observar, outrossim, que a disciplina da Lei nº 8.666/03 vincula os três Poderes das entidades políticas. É a lição de Marçal Justen Filho: “A expressão “Administração”, utilizada de modo generalizado, não deve ser interpretada como “Poder Executivo”. Os órgãos do Poder Judiciário e do Poder Legislativo, quando efetivam contratação com terceiros, desempenham atividade de natureza administrativa. Sujeitam-se nesse ponto aos princípios e regras atinentes à atividade administrativa do Estado (in Comentários à lei de licitações e contratos, 9ª ed., São Paulo, Dialética, 2002, pg. 19).
Assim, não resta dúvida de que o Poder Legislativo submete-se às normas gerais em matéria de licitação e contrato estabelecidas no âmbito federal e às leis ordinárias municipais sobre a matéria.
3- A disciplina da União – Lei Federal º 8.666/93 – Critério de interpretação em relação às exigências para habilitação
A lei federal que rege as licitações e contratos, regulamentando o art. 21, inc. XXVII, da Constituição Federal, é a Lei nº 8.666/93, que dispõe em seu art. 27:
“Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:
I- habilitação jurídica;
II- qualificação técnica;
III- qualificação econômico-financeira;
IV- regularidade fiscal;
V- cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.
…”
Prima facie, convém ter em conta a lição de Marçal Justen Filho:
“No tocante à habilitação, é imperioso eleger o critério de “utilidade” ou “pertinência” para elaboração dos editais. A insistência sobre esse ponto nunca é demais. Tem de interpretar-se a Lei nº 8.666 na acepção de que, qualquer exigência, a ser inserida no edital, tem de apresentar-se como necessária e útil para o caso concreto. Isso significa, inclusive, reputar que o elenco da Lei contempla um limite máximo de exigências, não um limite mínimo. A Administração não é obrigada a exigir, no caso concreto, todos os requisitos de habilitação referidos no art. 27 e seguintes” (op.cit., pg. 298).
Com efeito, não se pode ignorar a determinação constitucional de que as exigências seriam as mínimas possíveis.

4- A disciplina da União – Lei Federal º 8.666/93 em relação à regularidade fiscal
Ao tratar da documentação relativa à regularidade fiscal, a Lei nº 8.666/93 dispôs o quanto segue, no que tange ao tópico em exame:
” Art. 29. A documentação relativa à regularidade fiscal, conforme o caso, consistirá em:

III- prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal do domicílio ou sede do licitante ou outra equivalente, na forma da lei;
..”
A utilização da expressão “Fazenda” conduz, em aparência, à ampliação do conceito de regularidade meramente “fiscal”. Com efeito, a expressão “Fazenda” abrange não apenas os créditos de origem fiscal, mas todo e qualquer crédito de titularidade da pessoa de direito público – inclusive aqueles de origem não fiscal. Assim, créditos por multas, indenizações ou outras causas estariam abrangidas. Como bem anota Marçal Justen Filho, essa interpretação é despropositada e infringe o princípio constitucional que subordina as exigências de habilitação ao mínimo possível para assegurar a execução do objeto licitado (op.cit., pg. 307).
A exigência de regularidade fiscal representa forma indireta de reprovar a infração às leis fiscais. Rigorosamente, poderia tratar-se de meio indireto de cobrança de dívidas, o que poria em jogo a constitucionalidade da exigência. Observe-se que o STF tem jurisprudência firme, no sentido de que a irregularidade fiscal não pode acarretar a invibialização do exercício de atividades empresariais. Mencionem-se as Súmulas 70 (“É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributos”); 323 (“É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamentos de tributos”) e 547 (“Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça atividades profissionais”).
Não cabe, pois, desnaturar a possibilidade de exigência inscrita no art. 29, III da Lei nº 8.666/93 generalizando-a para todo e qualquer caso, pois a própria Constituição Federal erigiu no art. 37, inciso XXI, limites às exigências, e a Lei nº 8.666/93 admite a comprovação de regularidade fiscal como exigência máxima e conforme o caso.
5 – O tratamento dado a matéria no âmbito municipal. A Lei nº 13.278/02.
A Lei municipal nº 13.278/02 – que dispõe sobre normas específicas em matéria de licitação e contratos administrativos no âmbito do Município de São Paulo – dispõe: .
“Art. 23. – As exigências máximas para habilitação nas licitações no âmbito do Município de São Paulo são aquelas previstas na legislação federal, observado, no que couber, o previsto nesta seção.
Art. 24 – O Poder Executivo regulamentará a apresentação de documentos necessários e aptos a comprovar a regularidade fiscal dos licitantes.”
O art. 23 da Lei nº 13.278/02 estabelece, pois, que as exigências para habilitação expressas na lei federal seriam as máximas, observado no que couber o previsto na seção, e o art. 24 remete à regulamentação da documentação ao Poder Executivo a apresentação de documentos aptos de comprovação de regularidade fiscal. .
Ora, se a lei municipal fosse interpretada no sentido de que todos os editais de licitação no Município deveriam necessariamente exigir a comprovação de regularidade para com a Fazenda Pública, como condição de habilitação, incorreria em flagrante inconstitucionalidade. A uma, porque o art. 37, XXI da Constituição, in fine, limita as exigências legalmente admissíveis àquelas necessárias à garantia do cumprimento das obrigações, exceção feita, unicamente, pela própria Constituição à comprovação de regularidade para com a seguridade social (art. 195 § 3º); a duas, porque a Lei nº 8.666/93 – que estabelece normas gerais a serem observadas pelos Municípios – admite a comprovação de regularidade fiscal como condição de habilitação como exigência máxima e conforme o caso (caput do art. 29). No entanto, bem lamenta Marçal Justen Filho:
A partir do art. 29, inc. III da Lei nº 8.666/93 produziu-se interpretação que generaliza a regra do art. 195 § 3º, da CF/88 para todas as figuras tributárias. Os aplicadores da Lei de Licitações subverteram a ordem constitucional: a regra geral passou a ser a do art. 195 § 3º, ignorando-se o disposto no art. 37, inc. XXI. Segundo esse entendimento, qualquer dívida para com autoridade pública inviabiliza a contratação com a Administração Pública. Olvidou-se a natureza excepcional do art. 195 § 3º. Esqueceu-se, ainda, que o aplicador da Lei infra-constitucional não pode adotar princípio hermenêutico incompatível com a Constituição. A exceção autorizada naquele dispositivo não pode dar sustentação a outras restrições, que pretendam ir além do permitido constitucionalmente (op. cit., pg. 309)
Concordamos inteiramente com as conclusões alcançadas por este autor, segundo as quais o art. 195 § 3º da Constituição Federal estabeleceu regra excepcional, ao fixar que empresas em débito com o sistema da seguridade social não poderiam contratar com a Administração Pública. Essa regra tem de ser conjugada com o disposto no art. 37, inc. XXI, que proíbe adoção de restrições que ultrapassem o mínimo necessário à garantia do interesse público. Logo, pode afirmar-se que o disposto no art. 195 § 3º, consagra uma espécie de “punição” determinada pela própria Constituição. Esta é a única ressalva permitida, no âmbito da regularidade fiscal, ao disposto no art. 37, inc. XXI.
E o mesmo autor manifesta energicamente sua discordância com interpretações em voga nos entes federados no sentido de generalizar a exigência de comprovação de regularidade fiscal como condição para habilitação em qualquer caso:
“Passou a utilizar-se a licitação como instrumento indireto de cobrança de tributos e créditos fiscais. Ampliou-se, sem qualquer medida ou avaliação crítica, o requisito da regularidade fiscal. Em suma, incorreu-se em desvio de poder, eis que as exigências de regularidade fiscal somente podem ser impostas como exigência de idoneidade e confiabilidade do sujeito. (…)
Caracteriza-se, sem qualquer dúvida, o desvio de poder, pois a competência atribuída à Administração Pública para selecionar apenas licitantes aptos a executar satisfatoriamente determinada prestação passou a ser utilizada para “punir” aquele que não pagou pretensas dívidas. A configuração do desvio de poder é ainda mais inquestionável porque existe outro instrumento jurídico previsto como adequado para satisfazer o interesse público que estaria sendo buscado pela Administração. Ou seja, a via própria para exigir o pagamento de créditos fiscais é a cobrança por via executiva, sujeitada a procedimento específico. Não se instituiu a avaliação de regularidade fiscal como o instrumento jurídico para tanto.
Não se contraponha que a “Lei de Licitações” instituiu essa sistemática, adotando regra de cunho vinculado acerca de submissão da habilitação à comprovação da ausência de qualquer dívida em face da Fazenda Pública. Essa afirmativa não encontra respaldo na Lei. Ela retrata uma das diversas interpretações possíveis. E não pode ser admitida porque infringe o princípio da razoabilidade. Quando o edital desborda os limites da razoabilidade e consagra desvio de poder, ele tem de ser reprovado. De todo modo, se a Lei tivesse imposto solução despropositada dessa ordem, ter-se-ia de reconhecer sua invalidade, caracterizando-se o desvio de poder em nível legislativo. (op.cit., pg. 306).
Em síntese: o que a Lei nº 8.666/93 autoriza no art. 29, inc.III é, a possibilidade de o ente público exigir, nos editais que publique, conforme o caso, a comprovação de regularidade fiscal, mas nunca a obrigatoriedade dessa comprovação em todo e qualquer caso. Lei municipal que assim dispusesse seria flagrantemente inconstitucional, para além de estampar desvio de poder na atividade legislativa e clara ofensa ao princípio da razoabilidade.
Do exposto, deve-se buscar, na Lei Municipal em comento, interpretação conforme a Constituição. Admita-se, deste modo, a possibilidade de os editais exigirem, conforme o caso, em relação com o objeto contratado, e para garantia do cumprimento das obrigações, a comprovação de regularidade fiscal perante o Município. Afaste-se – com generalizações inadmissíveis – a suspeita de desvio de poder na atividade legislativa e a ofensa ao princípio da razoabilidade.

6- O tratamento dado à exigência de regularidade municipal no âmbito do Poder Executivo. Inaplicabilidade ao Poder Legislativo.
A Lei municipal nº 13.278/02 – dispondo sobre normas específicas em matéria de licitação e contratos administrativos no âmbito do Município de São Paulo – dispõe:
“Art. 24 – O Poder Executivo regulamentará a apresentação de documentos necessários e aptos a comprovar a regularidade fiscal dos licitantes.”
Regulamentando a Lei Municipal nº 13.278/02, o Decreto nº 41.772, de 8/03/02, dispõe:
“Art. 36. Nas modalidades de Concorrências Públicas e Tomadas de Preço, para fins de demonstração da regularidade fiscal dos licitantes, deverão ser exigidos documentos que comprovem:

V- regularidade com a Fazenda do Município de São Paulo, relativa aos tributos relacionados com a prestação licitada;”
E o art. 37 do Decreto nº 41.772, de 8 de março de 2002 – também mencionado no Relatório de Inspeção – dispõe:
“Art. 37- A exigência do inciso V, do art. 36 deste decreto, é aplicável também, é aos licitantes com sede fora do Município de São Paulo.
Parágrafo único – Caso não estejam cadastrados como contribuintes neste Município, deverão apresentar declaração, firmada pelo representante leal, sob as penas da lei, do não-cadastramento e de que nada devem à Fazenda do Município de São Paulo, relativamente aos tributos relacionados com a prestação judiciário.”
A questão a ser respondida pode ser assim enunciada: a Câmara Municipal deve cingir-se aos ditames de um Decreto do Poder Executivo municipal no que diz respeito ao documentos que haveriam de ser exigidos nos editais das licitações que promove? Tenha-se em conta que tal comprovação ou documento não é exigível pela legislação federal – que estabelece normas gerais em matéria de licitação e contratos – Lei nº 8.666/93 – nem pela legislação ordinária municipal , que não elenca quaisquer documentos ou forma de comprovação – ao dispor sobre normas específicas.
De acordo com a Constituição Federal, art. 2º, “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. A separação entre os poderes foi ainda erigida em cláusula pétrea da Constituição Federal (art. 60, § 4º, III).
No plano municipal – como ensina Hely Lopes Meirelles – estabelece-se o mesmo sistema de relacionamento governamental que assegura a harmonia e a independência dos Poderes no âmbito federal e estadual” (in Direito Municipal Brasileiro, 7ª ed., Malheiros Ed., São Paulo, 1990, pg. 16).
E entre as normas que asseguram a independência entre os Poderes insere-se aquela relativa à competência privativa da Câmara de Deputados e do Senado para disporem sobre sua organização, funcionamento, transformação ou extinção de cargos, empregos e funções de seus serviços (arts. 51, IV e 52, XIII da Constituição Federal).
Em harmonia com a Constituição Federal a Lei Orgânica do Município de São Paulo dispõe em seu art. 14:
“Art. 14 – Compete privativamente à Câmara:

III- dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços..”
E, finalmente, no exercício da competência privativa de dispor sobre sua organização e funcionamento, assegurada na Constituição Federal e na Lei Orgânica, o Regimento Interno da Câmara Municipal de São Paulo estabelece o quanto segue:
“Art. 13. À Mesa compete, dentre outras atribuições estabelecidas em Lei e neste Regimento ou deles implicitamente resultantes, a direção dos trabalhos legislativos e dos serviços administrativos da Câmara, especialmente:

II- No setor administrativo:

f) regulamentar o processo de licitações, observando-se o disposto no artigo 129 e parágrafos da Lei Orgânica do Município;
…”
O art. 129 da Lei Orgânica municipal estabelece, com propriedade, o quanto segue:
“As licitações e contratos celebrados pelo Município para compras, obras e serviços serão disciplinados por lei, respeitadas as normas gerais editadas pela União, os princípios da igualdade dos participantes, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo do interesse público e dos que lhe são correlatos.
§ 1º – A legislação ordinária estabelecerá limites diferenciados para a realização de licitações pelas unidades descentralizadas da administração municipal, bem como os casos de dispensa e inexigência de licitação.
§ 2º – As obras e serviços municipais deverão ser precedidos dos respectivos projetos ou estudos ainda quando se tratar de dispensa ou inexigibilidade de licitação, sob pena de invalidação de contrato.”
Portanto, a Câmara Municipal está adstrita, no processamento de suas licitações e contratos, à legislação ordinária federal e municipal. Não se submete, porém, a exigências, que, de acordo com o juízo de conveniência e oportunidade do chefe do Poder Executivo, devam constar nos editais de licitações promovidas no âmbito deste Poder. Vem a propósito a lição de Hely Lopes Meirelles: “a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias” (Direito Municipal Brasileiro, 7ª ed. atual., Malheiros Ed. Ltda., São Paulo, 1994, pg. 441).
Logo, afronta a Constituição Federal, a Lei Orgânica e o Regimento Interno a pretensa submissão da Câmara a ditames de regulamentos do Poder Executivo, na disciplina administrativa de seus serviços.
7- Da inexistência de “vício insuperável” no edital da licitação “sub examine”. Conclusões.
De acordo com o Relatório de Inspeção, “o edital contém vício insuperável”. Afirmam os seus subscritores – “essa omissão contamina a regularidade do procedimento, uma vez que a Lei Municipal nº 13.278, de 07.01.2202, art. 23 e 24, combinados com art. 36, inciso V e art. 37 do Decreto Municipal nº 41.772 de 08. 03. 2002, estabelece expressamente a prova de regularidade fiscal com o Município, para todas as empresas licitantes do Município, ainda que sediadas em outras localidades”.
Não procede tal constatação, pois face ao exposto nos itens precedentes, temos que:
1) a Constituição Federal estabelece no art. 37, que a lei somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações;
2) A lei nº 8.666/93, que estabelece, em consonância com a Constituição Federal, as normas gerais em matéria de licitação e contratos no âmbito da União, Estado e Município, estabelece no art. 29 – exigências máximas, e não mínimas, e o art. 23 da Lei municipal nº 13.278/02 assim o reconhece;
3) A Lei Municipal nº 13.278/03 não estabelece expressamente a exigência de prova de regularidade fiscal para com o Município em todo e qualquer edital. E uma possível interpretação em tal sentido haveria de ser rechaçada, porque o aplicador da Lei infra-constitucional não pode adotar princípio hermenêutico incompatível com a Constituição. A exceção autorizada no art. 195 § 3º da mesma não pode dar sustentação a outras restrições, que pretendam ir além do permitido constitucionalmente (art. 37, inc. XVII). Além disso, o art. 29, inc. III da Lei Federal nº 8.666/93 estabelece que a exigência de regularidade será cabível conforme o caso, sendo defeso à lei municipal generalizar dita exigência para todo e qualquer caso, sob pena de inconstitucionalidade, desvio de poder na atividade legislativa e ofensa à razoabilidade;
4) Não tem pertinência, no Relatório, a menção à inobservância ao Decreto nº41.772 de 08. 03. 2002 pelo Poder Legislativo, eis que este não se submete ao Poder Executivo na administração de seus serviços, como insculpido na Constituição Federal e Lei Orgânica Municipal, além de claramente expressado no Regimento Interno.
Por todo o exposto, improcede a alegação de vício, e muito menos “insuperável” no edital em questão.
Por quanto mais não fosse, “não há nulidade sem prejuízo” (“pas de nullitée sans grief”). Ora, a o edital em comento não sofreu impugnação de qualquer licitante, todos competiram em regime de igualdade. Logo, todos admitiram a legalidade das exigências relativas à regularidade fiscal. Não causou prejuízos a terceiros a inexistência de cláusula que exigisse comprovação de regularidade fiscal perante a Fazenda Municipal.
Tampouco se podem inferir prejuízos à Administração pelo fato de, eventualmente, contratar empresa em dívida para com a Fazenda Municipal. Conforme já mencionado, o poder público já conta com os meios apropriados e legalmente admitidos para cobrança de dívidas. E, como já demonstrado, a Constituição – bem como firme orientação do Supremo Tribunal Federal – não oferece amparo para utilização da licitação como meio de coerção de pagamento de tributos, com a ressalva do art. 195 § 3º (vedação de contratação de empresas em débito com a seguridade social).
Logo, a anulação de todo o procedimento, sob tal fundamento, é que, segundo me parece, estaria eivada de ilegalidade. Com efeito, ainda que se admitisse – por absurdo – que o edital estivesse eivado de ilegalidade por não exigir comprovação de regularidade fiscal, em nada estaria prejudicado o procedimento, eis que inexistentes prejuízos à Administração ou a terceiros: utile per inutile non viciatur – “o útil não é viciado pelo inútil”.
Lembre-se ainda que a anulação haveria de estar demonstrada em procedimento regular, com oportunidade de defesa. O terceiro de boa-fé teria preservados não apenas os efeitos do ato anulado como também teria direito à indenização por prejuízos decorrentes da anulação. Haveria o custo administrativo de renovar todo o procedimento. Ora, não se vislumbra, no caso em exame, sob qualquer ângulo, nem sequer remotamente, justa causa para tanto. Nessas circunstâncias, data maxima venia, a medida de anulação de todo o procedimento chega quase a sugerir desvio de finalidade.
Com efeito: anulando a licitação o Poder Público estará exercitando a sua faculdade de corrigir os próprios atos, quando eivados de ilegalidade ou carentes de utilidade para o serviço público. Mas ensina Hely Lopes Meirelles: “O que a Administração não pode é invalidar licitação sem justa causa, para favorecer ou prejudicar licitante. Se assim agir, praticará ato nulo, por excesso ou abuso de poder, com todos os consectários desse desvio de finalidade” (op.cit., pg. 139).
Por todo o exposto, não me parece susceptível de anulação o procedimento impugnado, eis que inexistente vício insuperável. Pelo contrário, parece-me que a exaustiva inspeção realizada, com a única ressalva jurídico-formal apontada no edital em questão, está a ressaltar a lisura e o cuidado com que o mesmo foi elaborado – em se tratando de objeto de não pouca complexidade.
Registre-se, entretanto e finalmente, que, recentemente, a Mesa Diretora da Câmara Municipal de São Paulo, no uso de suas atribuições estabelecidas no Regimento Interno (art. 13, II, f) , e com respaldo na Lei Orgânica, conforme dispositivos retro citados, editou o Ato nº 797/03 (D.O.M. de 15 de abril de 2003) no qual adota, no que for pertinente para a Câmara Municipal de São Paulo, o Decreto nº 41.772, de 08 de março de 2002.
Portanto, apenas a partir da publicação deste Ato da Mesa, a Câmara Municipal de São Paulo deverá observar, nas licitações que promover, a comprovação de regularidade para com a Fazenda Pública municipal, nas condições estabelecidas por aquela norma do Executivo – uma vez que a autoridade competente, no âmbito do Poder Legislativo, assim o determinou.
Ocorre que o edital da licitação em exame foi publicado antes da edição do referido Ato da Mesa. Logo, sem pertinência – reitere-se por derradeiro – a pretensa obrigatoriedade de observância do Decreto 41.772/02 pelo Poder Legislativo no caso em exame. Entendimento contrário afronta o princípio de independência entre os Poderes, expresso na Constituição Federal e na Lei Orgânica do Município.
São as considerações que faço, e que submeto, com minhas homenagens, à criteriosa apreciação superior.

São Paulo, 21 de agosto de 2003

Maria Nazaré Lins Barbosa
Assessor Técnico Legislativo- OAB 106.017

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