Parecer n° 99/2003

AT.2 – Par. nº 099/03

Ref: Memo. CPI-Habit nº 009/03
Interessado: Vereador ********
Assunto: Quebra de sigilo bancário; conta bancária da PMSP;
proteção legal de sigilo; necessidade de autorização judicial; possibilidade de convocação da autoridade responsável pela conta bancária.

Sr. Assessor Chefe,

Trata-se de consulta do Nobre Vereador ********, encaminhada pela MD Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, cujo objeto investigado é a alocação e destinação dos recursos direcionados ao Fundo Municipal de Habitação.

Questiona o membro do colegiado investigativo sobre a necessidade de autorização judicial para que instituição financeira forneça informações a CPI atinentes à movimentação bancária de conta, cuja titularidade seja a própria Prefeitura Municipal de São Paulo.

O sigilo bancário é direito constitucionalmente garantido no art. 5o., quando estabelece em seu inciso X que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (…)”, e constitui obrigação imposta legalmente às instituições bancárias em geral.

A Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências, prevê que:

“Art. 1o. – As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”.

Essa regra máxima tem suas exceções estabelecidas no § 4o., que elenca as hipóteses em que o sigilo poderá ser quebrado, entre elas o de ocorrência de ilícito contra a administração pública.

Estabelecidas as garantias nesses termos, há que se considerar agasalhada sob o manto legal a garantia de sigilo inclusive das contas mantidas em instituições bancárias públicas por entes estatais, ainda que vinculadas a fundos públicos com destinação restrita, como o caso em que se apresenta.

De outro lado, a Lei Orgânica do Município de São Paulo guarda simetria em relação à Constituição Federal quando estabeleceu que “As Comissões Parlamentares de Inquérito terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos no Regimento Interno, em matéria de interesse do Município, e serão criadas pela Câmara, mediante requerimento de 1/3 (um terço) de seus membros,(…).” (art.33 – LOMSP).

Ainda, o § 1o. desse artigo elenca os poderes investigativos, incluindo em seu rol os relativos a auditoria, como “requisitar, dos responsáveis, a exibição de documentos e a prestação dos esclarecimentos necessários”, “proceder a verificações contábeis em livros, papéis e documentos de órgãos da administração direta, indireta e fundacional”, tomando depoimento de autoridade municipal quando necessário.

No entanto, como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, esses poderes encontram limitação no princípio constitucional da reserva de jurisdição, que repousa na atribuição de competências exclusivas ao Judiciário, como já explicitado no Acórdão do MD Ministro Celso de Mello, proferido no MS-23452/RJ, publ. DJ 12.05.00:

“O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de ‘poderes de investigação próprios das autoridades judiciais’.
A cláusula constitucional da reserva de jurisdição – que incide sobre determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art.5o., XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5o., XII) e a flagrância (CF, art. 5o. , LXI) – traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado.”

Há que se ressaltar, ainda, que os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito, constituídas no âmbito dos legislativos de qualquer esfera, são previstos no art. 58, § 3o. da Carta Política, que assim dispõe:

“Art. 58 – O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.
(…) § 3o. As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso,, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.” (grifado)

Refere-se a Carta Magna, portanto, às atribuições e poderes de investigação das CPI’s instituídas no âmbito da União, regramento esse que, em respeito ao princípio da simetria entre os entes estatais, alcança esta Edilidade.

No entanto, até mesmo os “poderes de investigação de autoridades judiciais”, previstos no art. 58, § 3o. , CF, devem ser entendidos restritivamente.

Nesse sentido, escreveu Luís Roberto Barroso, Prof. Titular de Direito Constitucional da UERJ, Mestre em Direito pela Universidade de Yale:

“ Alguém poderia perguntar-se qual a razão de ser, então, da cláusula constitucional que atribui poderes de investigação de autoridades judiciais à comissão parlamentar de inquérito. A resposta não é difícil. Antes do acréscimo de tal previsão ao texto, prevalecia o entendimento veiculado na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 32.678, na vigência da Constituição de 1946 (e que não foi alterada, nesta parte, pela Carta de 1967-1969), de que as comissões parlamentares de inquérito não poderiam obrigar as testemunhas faltosas a comparecer, nem praticar outros atos de coerção.
A rigor, o que se pretendeu com a inovação foi dar caráter obrigatório às determinações da comissão, ensejando providências como a condução coercitiva em caso de não-comparecimento e impondo às testemunhas o dever de dizer a verdade. Mas, mesmo nestas duas hipóteses, o que se instituiu foi o poder da comissão e o dever do particular. Não houve outorga de auto-executoriedade à comissão, que, em qualquer caso, haverá de servir-se do Poder Judiciário. A norma atributiva de poderes de investigação de autoridade judicial tem caráter material, e não processual. Institui o poder de exigir, mas não o de executar.”( BDA-Dez./96 – pág.803 – grifado)

O entendimento sobre a matéria está longe de ser pacífico, e opiniões há em todos os sentidos, inclusive admitindo-se poderes de auto-executoriedade para a determinação direta de quebra de sigilo bancário, como escreveu Flávio Andrade de Carvalho Britto, Subprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro:

“É verdade que há sobre a matéria opiniões dos mais diversos matizes. No entanto, coerente com manifestação anterior (Parecer nº 16/01-FACB), filio-me à posição externada pelo Supremo Tribunal Federal, que no julgamento do Mandado de Segurança nº 23.452-RJ, Relator Min. Celso de Mello, afirmou a competência das Comissões Parlamentares de Inquérito para determinar diretamente a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico, exigindo, tão somente, a fundamentação da decisão.
(…)
E, como as competências e atribuições das Comissões Parlamentares de Inquérito têm sua matriz no art. 58, § 3o., da Constituição Federal, a decisão do Supremo Tribunal Federal deve ser aplicável às CPIs instituídas no âmbito das Casas Parlamentares estaduais e municipais, inexistindo razão plausível para se pensar em sentido diverso, mormente quando se recorda que nossa estrutura federativa inclui, expressamente, o município, invocando-se, nesse sentido, a letra do art. 1o. de nossa Constituição Federal.”

Há que se ressaltar que a própria Lei Complementar 105/01 restringe o fornecimento de informações sigilosas a prévia autorização judicial:

“Art. 3o. Serão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Judiciário, preservado o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide.
§ 1o. Dependem de prévia autorização do Poder Judiciário a prestação de informações e o fornecimento de documentos sigilosos solicitados por comissão de inquérito administrativo destinada apurar responsabilidade de servidor público por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.”

No mesmo diapasão, essa norma restringe o pedido direto do Legislativo para o fornecimento de informações sigilosas à esfera federal:

“Art. 4o. O Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários, nas áreas de sus atribuições, e as instituições financeiras fornecerão ao Poder Legislativo Federal as informações e os documentos sigilosos que, fundamentadamente, se fizerem necessários ao exercício de suas respectivas competências constitucionais e legais.
§ 1o. As comissões parlamentares de inquérito, no exercício de sua competência constitucional e legal de ampla investigação, obterão as informações e documentos sigilosos de que necessitarem, diretamente das instituições financeiras, ou por intermédio do Banco Central do Brasil ou da Comissão de Valores Mobiliários.
§ 2o. As solicitações de que trata este artigo deverão ser previamente aprovadas pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, ou do plenário de suas respectivas comissões parlamentares de inquérito.” (grifado)

Dessa forma, a própria Lei é de expressa aplicação restrita à esfera Federal, não podendo ser estendida automaticamente a outros entes federados por tratar-se de lei garantidora de direito individual , que deve, em conseqüência receber interpretação restritiva quanto à flexibilização da garantia, salvo na presença de expressa recomendação positiva em contrário.

Finalmente, digno de nota, conforme já mencionado, que as Comissões Parlamentares de Inquérito instaladas nesta Casa gozam das prerrogativas descritas nos artigos 32 e 33 da Lei Orgânica do Município de São Paulo, tais como:

“Art.33 (…)
§ 1o. (…)
I – tomar depoimento de autoridade municipal, intimar testemunhas e inquirí-las sob compromisso, nos termos da lei;
II – proceder a verificações contábeis em livros, papéis e documentos de órgãos da administração direta, indireta e fundacional.”

Da mesma forma, impõe-se ao Chefe do Executivo o dever de “prestar à Câmara Municipal as informações solicitadas, no prazo de 30 (trinta) dias, na forma estabelecida por esta Lei Orgânica” (art. 71, inc.V).

Destarte, é possível a convocação da(s) autoridade(s) responsável (eis) pela movimentação da conta corrente, para que forneça os extratos, ou os providencie junto à instituição bancária, fornecendo-os à Comissão Parlamentar de Inquérito, o que tornaria desnecessária a propositura de medidas extremas.
Em apertada síntese:
1. as contas bancárias em geral são alcançadas pelo sigilo bancário, imposto pela Lei Complementar 105/01, e consiste obrigação das instituições financeiras resguardá-lo;
2. as hipóteses de quebra de sigilo previstas nessa norma referem-se à determinação judicial ou legislativa federal;
3. há divergência na doutrina, e não há jurisprudência quanto à possibilidade de CPI municipal determinar a qualquer instituição financeira o fornecimento de informações sigilosas;
4. ainda que a CPI não tenha poderes, em princípio, para determinar a quebra de sigilo, pode, em qualquer caso, requerer informações da autoridade municipal competente e/ou convocar o responsável pela administração do fundo para fornecer informações sobre a movimentação bancária relativa a recursos públicos, nos termos do art. 32 e 33, c/c art. 70, inc.V, todos da Lei Orgânica do Município de São Paulo, o que tornaria dispensável a propositura de medidas extremas.
Este é o parecer, que se submete à superior apreciação, com as pertinentes homenagens e respeito.
São Paulo, 07 de maio de 2003.

MARIA NAZARÉ LINS BARBOSA
Assessor Técnico Legislativo (Juri)
OAB/SP 106.017

INDEXAÇÃo
Quebra de sigilo bancário
CPI
ANDAMENTO
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
AVERIGUAÇÃO
COMPETÊNCIA
CONTA BANCÁRIa
CPI
DETERMINAÇÃO JUDICIAL
ENTE PÚBLICO
EXTRATO
FORNECIMENTO
INFORMAÇÃO SIGILOSA
INVESTIGAÇÃO
INVIOLABILIDADE
LIMITAÇÃO
MOVIMENTAÇÃO
PODER JUDICIÁRIO
Poder de investigação
QUEBRA
RESTRIÇÃO
SIGILO BANCÁRIO